António João Maia, Público online,

Sinto uma vergonha profunda por alguns membros da minha raça serem capazes de dar ordens, e outros de as cumprir, no sentido de, de forma fria e desumana, se operar a destruição massiva das vidas de outros seres semelhantes.

Vergonha de ser humano. São estas as únicas palavras que consigo encontrar para traduzir o sentimento de profunda tristeza que me vai na alma, a qual se mantém incrédula com todos os acontecimentos horrendos que nos são mostrados sobre a bárbara invasão da Rússia sobre o território, o povo e o património da Ucrânia.

E admito mesmo, sem correr o risco de falhar, que o mais provável seja que este sentimento, composto por um misto de inúmeras facetas extremamente negativas – estupefação, incompreensão, angústia, frustração, raiva, a par de outras que a realidade ainda não nos tinha mostrado ou que a história já nos tinha feito esquecer –, esteja também presente na grande maioria dos cidadãos do mundo.

É verdade que o mundo tem sofrido, de modo mais ou menos permanente, de situações de conflitos regionais. Uns mais mediatizados do que outros, todos invariavelmente associados a disputas de diversa ordem, e todos a deixarem lastros pesados de vítimas, a esmagadora maioria delas sem qualquer interesse direto nesses conflitos.

Agora por certo não será diferente. Mas esta guerra, que muitos comentadores afirmam ser a primeira a ser transmitida praticamente em direto nas televisões e nas redes sociais, é particularmente pesada do ponto de vista do sofrimento humano que tem causado. É muito duro ver cidades inteiras destruídas por ataques aéreos e de artilharia. É particularmente pesada toda a dimensão de desumanidade associada ao vermos simples cidadãos ucranianos, muito deles crianças, serem barbaramente mortos pelas tropas invasoras ou a sujeitarem-se à condição de refugiados, a terem de abandonar a sua vida e tudo o que a define – casa, trabalho, vizinhos, amigos, animais de estimação, etc – para tentar escapar a uma morte quase certa.

Por isso considero estar a ser atravessado por esse sentimento muito triste e inqualificável de vergonha por ser humano. De sentir uma vergonha profunda por alguns membros da minha raça serem capazes de dar ordens, e outros de as cumprir, no sentido de, de forma fria e desumana, se operar a destruição massiva das vidas de outros seres semelhantes apenas porque fazem parte de uma sociedade que optou livremente por adotar modelos de vida distintos.

Que tristeza. Que frustração. Que degradação. Que humilhação.

“Como é possível? O que está a acontecer? Porque está a acontecer? Que razões – se as haverá – poderão justificar uma barbárie destas, sobretudo nos nossos dias, em pleno século XXI?” - são provavelmente muitas das questões que nos assaltam e para as quais procuramos as respostas que, pelo menos, nos permitam, por pouco que seja, algumas explicações para o que está a suceder.

Por certo que existirão muitas explicações para o facto. E vamos tomando nota delas pelos comentadores que vemos e ouvimos nas televisões e nos media de todo o mundo. Especialistas em todas as áreas – políticos, militares, economistas, juristas, sociólogos, criminólogos, antropólogos, e tanto outros –, todos com as suas explicações mais ou menos técnicas, mais ou menos científicas, mais ou menos claras, mais ou menos objetivas, mais ou menos tendenciosas, mais ou menos rigorosas, mas todas sobretudo incompletas, na medida em que, no limite, a solução bélica é e sempre será pouco explicável e defensável do ponto de vista da racionalidade pura e objetiva e da ética humana – se nalguma circunstância possa ser aceitável explicar-se uma solução bélica para qualquer problema, como explorei anteriormente em realidade triste - vidas suspensas e apagadas e em as crianças russas e as circunstâncias de uma guerra.

Não sou especialista em questões militares, nem políticas, mas, como cidadão, considero ter o dever de dar nota da indignação e da tristeza que habita a minha alma. E faço-o não pela presunção de considerar que tenha uma opinião que deva ser especialmente considerada – por certo que não o será! –, mas por entender que a guerra é seguramente um dos principais problemas que afeta profundamente os principais valores na vida das pessoas, dos cidadãos e dos seus interesses, como sejam desde logo a própria vida, a segurança, a defesa, a justiça, a paz, a tranquilidade, e a liberdade, entre outros.

E será assim, exclusivamente como cidadão interessado nas questões de interesse coletivo que partilho aqui algumas das minhas considerações sobre a circunstância bélica que nos afeta, claro que com uma incidência e carga violenta incomparavelmente mais pesada e letal sobre os povos e os cidadãos da Ucrânia, e também da Rússia, que estão a sofrer diretamente na pele todos os seus impactos.

As circunstâncias são as seguintes:

- Apesar de vermos as imagens de ataques e a ampla destruição a cidades e a mortes selvagens causadas em território da Ucrânia, o povo russo estará a ser também uma vítima maior do conflito. Desde logo porque os soldados russos são filhos de famílias, a maioria das quais a (sobre)viver em contextos de grande pobreza. São filhos de país e mães que provavelmente pouco ou nada sabem dos destinos das vidas dos seus entes. Deste ponto de vista, as vítimas mais diretas da guerra são a Ucrânia e o seu povo, o povo russo, e o futuro destas duas sociedades. Não é nem será futuramente justo vir a condenar a sociedade russa pelo que se está a passar na Ucrânia. Os responsáveis são unicamente os seus líderes políticos e as elites económicas que as sustentam, embora saibamos que serão a presente e as sucessivas futuras gerações de russos que vão ter de pagar todos os custos (perda de vidas e de infraestruturas ucranianas) causados por este devaneio dos atuais líderes. Será inevitável!

- A presente e as futuras gerações dos dois povos vão ficar a conviver numa circunstância de ódio e tensões muito profundas, causadoras de uma desconfiança permanente, o que requererá fortes apoios de outros Estados na procura de soluções de cooperação e de entreajuda em todas as áreas. Será inevitável e necessário!

- Nenhum país do mundo está livre do risco de ter algum dia um louco ou um conjunto de loucos que decidam conduzir toda a sociedade para uma espécie de precipício com um recorte semelhante a este. Por isso a democracia se revela uma vez mais como o modelo de organização política menos mau de todos os que se conhecem (recuperando os termos de Churchill). Neste enquadramento, é de importância fundamental o aprofundamento da democracia em todos os países do mundo, associado a políticas que reduzam as assimetrias sociais e económicas das sociedades e a formação dos cidadãos para uma participação motivada, esclarecida e ativa em todo o processo democrático. São – têm de ser! – os cidadãos a escolher livremente que futuro querem para si e para as suas sociedades em cada circunstância. Será necessário! Mas conseguirá o ser humano algum dia chegar a esse patamar?