António João Maia, Revista Sábado

Na vida nada está garantido e nenhuma circunstância é imutável

Nota prévia – Quis a realidade que a primeira crónica de reflexão publicada neste espaço como membro do Observatório de Economia e Gestão de Fraude coincidisse com os primeiros dias da estúpida (em qualquer circunstância, a guerra é sempre uma estupidez!) invasão militar das tropas russas à Ucrânia. Todos estamos emocionalmente muito envolvidos. A razão fica sempre muito toldada pela emoção, por um profundo sentimento de injustiça e pela raiva de pouco podermos fazer. O texto que apresento foi refeito muitas vezes. Em face da realidade a que assistimos através das televisões, as palavras parecem ocas, distantes, por vezes quase desprovidas do sentido que sempre lhe atribuímos. Mas elas são importantes! São uma das formas de mostrar a indignação e a revolta que por certo mora em cada uma das pessoas um pouco por todo o mundo. Deixo um abraço forte de solidariedade a todo o povo ucraniano pela valentia como está a enfrentar estes momentos de enorme convulsão na sua história (o Presidente Zelensky tem sido um enorme exemplo de liderança e de inspiração à resistência), e também a todos os povos do mundo que acreditam e promovem os valores do humanismo, como a paz, a liberdade, a justiça, a igualdade, a cooperação, a entreajuda, o respeito, e tantos outros.

 

Um mal nunca vem só, é por certo uma forma de caracterizar os tempos que temos vivido no mundo nestes primeiros anos da terceira década do século XXI.

Agora que estávamos a começar a ficar animados com a perspetiva do regresso à normalidade das nossas vidas, com o “aparente” controlo do vírus da Covid-19 que durante dois longos anos deixou um pesado rasto de morte, angústia e incerteza um pouco por todo o lado, zás, num ápice de poucos dias e numa espécie de novo desafio às capacidades dos homens, é-nos atirada para a frente uma guerra.

Que o digam particularmente os ucranianos, que estão a sofrer diretamente na pele os efeitos da traiçoeira e bárbara invasão militar lançada ao seu país por um gélido, inflexível e tirano Putin, a pretexto de um alegado e obscuro conceito de garantia de “zonas políticas de influência”, seja lá o que isso for.

Que o digamos depois nós, os cidadãos espalhados um pouco por todo o mundo, que, estupefactos e com crescentes sentimentos de uma profunda injustiça e raiva sobre os acontecimentos, vamos acompanhando o evoluir dos factos pelas televisões e aderindo a uma forte onda de solidariedade para com o povo ucraniano e o modo heroico como está a arriscar a própria vida para defender a sua pátria e os valores de liberdade em que acredita.

E, claro, estamos também todos nós muito apreensivos, embora a um nível bem menos preocupante e alarmante, quanto aos impactos negativos que o conflito por certo provocará – já está a provocar! – nas nossas economias e na nossa qualidade de vida. Neste momento todos estes efeitos são totalmente irrelevantes quando comparados com o sofrimento atroz de todo um povo.

Muito se tem dito e escrito sobre esta circunstância da guerra. Sobre as suas causas explicativas. Sobre possíveis cenários de desenvolvimento futuro, incluindo a invasão de outros países da mesma alegada “zona política de influência” A possível utilização de armas nucleares. O envolvimento direto da NATO. O rearmamento dos países e dos grandes blocos de interesses económicos. A criação de uma força militar defensiva no quadro da União Europeia. Enfim sobre as muitas e diversas componentes que caracterizam a realidade geopolítica e a economia global no imediato e no seu futuro, que se vê vão mudar de forma muito profunda.

E, se ainda formos capazes de nos lembrar – agora tudo nos parece muito longínquo – o mesmo sucedeu durante a fase da Covid. As notícias que davam conta da evolução diária dos números de infetados e de mortos. Dos picos de infeção virológica e da correspondente pressão sobre os hospitais. Das medidas de controlo, como o recolher obrigatório, o recurso ao teletrabalho, o uso de máscaras, do processo de identificação das vacinas e da sua inoculação a toda a população, entre outras.

Enfim, dois problemas distintos de grande seriedade, que, um após o outro, vieram desafiar e colocar à prova, suspendendo a regularidade das nossas vidas, mostrando-nos essa certeza obvia, mas muitas vezes esquecida ou negligenciada, de que na vida nada está garantido e nenhuma circunstância é imutável.

A componente que pretendo explorar um pouco a propósito desta sequência de desafios é a de que as nossas vidas estão sempre expostas à possibilidade de serem confrontadas com questões que, pelas mais diversas formas, nos são impostas de um modo global dada a sua natureza e magnitude. Por questões que não podemos ignorar e relativamente às quais nem sequer nos podemos afastar.

É verdade que, pelo menos até há dois anos, as nossas vidas decorreram ao longo de décadas em contextos de ausência de imposições daquela natureza, o que nos conferiu um sentimento coletivo de segurança e uma perceção de liberdade sobre cada decisão concreta que tomámos em cada momento e circunstância. A sensação de que o nosso futuro (individual e coletivo) estava na palma da mão, e que poderíamos seguir por onde nos parecesse mais ajustado e apropriado em cada ocasião. Eramos livres, ou, pelo menos, acreditávamos que o eramos!

Mas é igualmente verdade, como a triste realidade tem mostrado, que por vezes as circunstâncias da vida adquirem uma dimensão impositiva que não permitem de modo nenhum que as ignoremos ou que as desconsideremos. Que não deixam ninguém de fora. E mais, que requerem que tenhamos a humildade de perceber que temos de nos entreajudar e adaptar do modo mais adequado às mesmas.

E, deste segundo conjunto de circunstâncias, a realidade destes dois anos mostra-nos que algumas são naturais, ou seja, que é a própria natureza que nos apresenta um desafio novo – como foi o caso do vírus da Covid-19 –, que ninguém pode ignorar nem rejeitar por opção, mas que, por isso, requer a adoção de um esforço conjunto para ser percebido e para se encontrar uma solução mais ajustada para o enfrentar. São, se quisermos, os problemas que a natureza nos impõe – um vírus, uma cheia, um vendaval, um terramoto, um tsunami, uma tempestade etc.

E há depois outras circunstâncias – como o caso das situações de guerra – que decorrem de decisões de alguns espíritos tiranos – com capacidade, poder e apoio para as adotar – que também se tornam impositivas para todos. Que exigem um esforço de todos para as perceber e, sobretudo, para as enfrentar, sempre com muita angústia, com grande esforço e muitas vidas apagadas.

E é esta segunda dimensão que torna tudo profundamente absurdo (se esta palavra é ajustada ou mesmo se existe alguma outra, nalguma língua, que traduza a dimensão tirânica destas opções?). É por certo uma característica muito primária, fora de qualquer racionalidade básica minimamente equilibrada no modo de ser e de estar na vida, esta que é revelada por estes espíritos. Querer impor a terceiros, por qualquer forma, incluindo pela força, com perda de vidas, uma ideia, um estilo de vida. Não perceber que todos, pessoas, organizações e países, têm direito à autonomia de decisão. A escolher o modo mais adequado de organização social e política.

E esta imposição inclui muitas vezes, como é o caso presente, os próprios concidadãos. Os cidadãos russos que vivem no seu país e os próprios soldados do exército que estão envolvidos neste ataque também estão a ser vítimas destas circunstâncias.

Claro que pouco ou nada podemos fazer para evitar as imposições naturais, por assim dizer, mas o que pode ser feito relativamente às segundas, às imposições originadas no próprio homem?

Esta é provavelmente uma das questões que se colocará depois desta tragédia, esperando que rapidamente e com o menor custo de vidas se chegue ao pós-guerra.

Creio, para finalizar, que a reflexão em torno desta dimensão não pode deixar de incluir três âmbitos:

  • Educar para a importância dos valores de ética e do respeito pelos mesmos.
  • Consciencializar para a cidadania, para o respeito e partilha dos valores da ética com os outros e para uma participação cívica, ativa e responsável, incluindo nos processos de tomada de decisão sobre questões de interesse coletivo.
  • Democratizar, para evitar o risco de os poderes máximos de uma sociedade possam ficar concentrados numa única pessoa ou instituição.