José António Moreira, Jornal i online

A partir de casa, através do “homebanking”, conseguir concretizar uma tão simples e inócua transação financeira constituiu um autêntico calvário

Antes do fim de ano, numa atitude que se repete regularmente no mesmo período, decidi subscrever algumas unidades de participação de um fundo de investimento enquadrado nos denominados PPR – Plano Poupança Reforma. Um produto financeiro de baixo risco e, consequentemente, de modesta rentabilidade.

A partir de casa, através do “homebanking”, conseguir concretizar uma tão simples e inócua transação constituiu um autêntico calvário. Primeiro obstáculo, os meus conhecimentos financeiros não estavam certificados (ou estariam desatualizados). Foi-me proposto que respondesse a um questionário, de muitas perguntas, que me exigiu respostas sobre os meus conhecimentos de Finanças. Consegui passar esta etapa. Segundo, o meu perfil continuou desatualizado por um par de dias – julgo que por alguém na instituição não ter ainda certificado a minha qualificação financeira, expressa através do questionário – o que continuava a impossibilitar a subscrição das ditas unidades. Terceiro, quando o perfil foi atualizado, tive de folhear, eletronicamente, quase uma dezena de folhas de informação financeira geral e sobre o dito produto, onde fui bloqueado, novamente, por me ter esquecido de assinalar, num minúsculo quadradinho, que lera e percebera o conteúdo dessas páginas. Finalmente, qual corredor de prova de obstáculos, cansado, mas motivado pela resiliência demonstrada na ultrapassagem dos mesmos, vi à minha frente, espelhada no ecrã do computador, a possibilidade de poder fazer o meu pequeno investimento.

Não inquiri a gestora de conta sobre o porquê de tal calvário, sobretudo o questionário, porque sabia antecipadamente a resposta. Conheço minimamente a Lei que a isso obriga, cujo objetivo é reduzir a possibilidade de um cidadão ser aldrabado nas suas relações com os intermediários financeiros – meritória preocupação, sem dúvida.

Resultado: dormem todos descansados, consciência tranquila. O investidor, porque, cansado do esforço que lhe é imposto, o corpo impõe-lhe um sono pesado e isento de quaisquer considerações de consciência; as instituições financeiras, porque cumprem a Lei, escrupulosamente; o Legislador, porque confia que a dezena de folhinhas de proteção, com que presenteia os cidadãos que ousem fazem uma qualquer aplicação financeira, é a guardiã eficaz e intransponível contra qualquer trapaça.

Estar-se-ia em presença de mais uma estória com final feliz não fosse um “mas” que por ali anda e que sempre acaba, como qualquer “mas” teimoso, por estragar os finais almejados.  

O A. apareceu, como acontece com alguma regularidade, para esclarecer um pequeno aspeto relacionado com a sua atividade de gerente de uma microempresa. “A empresa tem algum dinheiro na conta à ordem e o funcionário do banco disse-me que era melhor aplicar esse dinheiro num fundo de investimento, pois rende – o que não acontece com o depósito – e não tem risco …”

“Não tem quê?!”, quase berrei. Como o leitor intuirá, a conversa que se seguiu com o A. girou toda em torno do que é um fundo de investimento e se implica ou não o risco de perda de capital. Saquei a ficha do referido fundo da “net”, procurei, marquei a vermelho a frase onde esse risco estava expressamente referido, mas, por mais convincentes que fossem os meus argumentos e explicações, entre os dois estava, sempre, o fantasma do funcionário do banco, que dissera que não tinha. Por fim, esgotada a paciência, sugeri-lhe que voltasse ao banco e mostrasse ao funcionário a parte que eu assinalara a vermelho e, então, ouvisse da parte dele um pedido de desculpas. Deixou-me, ombros caídos, cabisbaixo. Não sei qual foi o desfecho da conversa que, supostamente, teve no banco, embora não me admirasse se o dito funcionário o tentasse aldrabar, mais uma vez, com informação errónea.

Os dois acontecimentos que brevemente descrevi, ocorridos com intervalo de poucos dias, fizeram-me voltar a refletir sobre o que, metaforicamente, pode ser entendido como colar o penso onde dói, não onde está a ferida aberta. O Legislador, consciente de um problema de assimetria de literacia financeira na relação cidadãos-instituições financeiras, arranjou uma solução administrativa, visível nas muitas folhas de informação que são colocadas diante do cidadão, para este assinar. Esqueceu, porém, que tudo isso é em vão – salvo nos aspetos de responsabilização do cidadão que assina as ditas folhinhas, ou que pede a alguém para lhe preencher o questionário de literacia financeira. Se ele não souber o que é, por exemplo, um fundo de investimento, não há folhinhas que evitem que possa ser trapaceado.   

Num tempo em que cada cidadão, em maior ou menor grau, está engajado na sustentabilidade do planeta, seria muito mais responsável se o gasto com os milhões de folhinhas que anualmente são impressas com essa informação que ninguém lê, ou cujo conteúdo não percebe, fosse poupado e os recursos inerentes fossem desviados para campanhas maciças de literacia financeira, a começar pelas escolas básicas e a terminar na formação para adultos.

Ganhava o planeta, ganhava o sistema financeiro, ganhavam os cidadãos em geral. Isto, sim, seria um final feliz.