Mário Tavares da Silva, Expresso online (130 01/07/2021)

 

 

“É preciso, antes de tudo o mais, ter presente que falar de branqueamento de capitais é, também, numa visão holística do ciclo criminal e corruptivo, falar de uma parte do problema, dada a sua relação inextrincável com o financiamento ao terrorismo que, como todos bem sabemos, pressupõe o fornecimento de fundos a organizações de natureza terrorista, em muitos casos de complexa geografia transfronteiriça, complexidade essa aditivada pela já recorrente utilização de redes informáticas globais de larga opacidade e especialização tecnológica”

Num recente e importante relatório especial publicado pelo Tribunal de Contas Europeu, concluiu-se, aliás sem surpresa refira-se, que os esforços da UE para combater o branqueamento de capitais no setor bancário se apresentam fragmentados e de aplicação insuficiente.

Apesar da auditoria ter colocado o seu foco no setor bancário, as suas conclusões revelam-se naturalmente suscetíveis de poderem ser alargadas para a política relativa ao branqueamento de capitais e ao financiamento ao terrorismo (BC/FT) no âmbito de outros setores. Neste relatório, publicado a 28 de junho, a principal questão de auditoria consistiu em saber se a ação da UE na luta contra o branqueamento de capitais no setor bancário tem vindo a ser desenvolvida e executada corretamente ou se, ao invés, tal ainda não sucede, com repercussões diretas na vida de todos nós.

A este propósito, e se é certo que o branqueamento de capitais pode campear por qualquer um dos setores da economia, indo desde o jogo a dinheiro à transação de mercadorias diversas, passando pela agiotagem e pelo incontornável e rentável negócio de compra de imóveis, a verdade é que os branqueadores de capitais acabam sempre por recorrer, numa ou noutra medida, ao sistema bancário para aí procederem à “insuspeita” conversão e movimentação do produto do crime, processo a que aliás comumente se designado por "layering".

O branqueamento de capitais continua, pois, a ser a prática de eleição para a "legitimação" do produto do crime, introduzindo-o na economia dita regular e, por essa via, dissimulando a sua origem ilegal e criminosa.

Para falarmos de dados, ponto sempre importante quando se tratam matérias desta natureza, refira-se que na Europa, a Europol estima que o valor das operações suspeitas se situe em algumas centenas de milhares de milhões de euros, ou qualquer coisa como o equivalente a 1,3% do produto interno bruto (PIB) da UE.

A nível internacional, estima-se que representem 3% do PIB mundial.

São números que impressionam e que não devem, em circunstância alguma, afastar-nos do essencial que é, como bem sabemos, continuarmos, todos, a combater, da forma que nos for possível, este fenómeno que mina as democracias e corrói o tecido social e económico dos Estados.

É preciso, antes de tudo o mais, ter presente que falar de branqueamento de capitais é, também, numa visão holística do ciclo criminal e corruptivo, falar de uma parte do problema, dada a sua relação inextrincável com o financiamento ao terrorismo que, como todos bem sabemos, pressupõe o fornecimento de fundos a organizações de natureza terrorista, em muitos casos de complexa geografia transfronteiriça, complexidade essa aditivada pela já recorrente utilização de redes informáticas globais de larga opacidade e especialização tecnológica.

Nesse contexto, e como sinteticamente refere, e bem, o relatório, o financiamento do terrorismo é uma espécie de inverso do branqueamento de capitais, dado que, não raras vezes, o que ocorre é que pequenas quantias de produtos legais são agregadas e aplicadas em atividades terroristas.

No final do dia, e para as contas da democracia e da vida de todos nós, o importante é mesmo ter a noção do caráter profundamente danoso que essas atividades, que se traduzem em fluxos financeiros ilegais, infligem, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista económico quer, ainda, do ponto de vista ético e da integridade públicas, enquanto valores civilizacionais típicos de um Estado de direito democrático.

Desse relatório, ressaltam várias e importantes conclusões e recomendações, a reclamarem dos diferentes Estados-Membros a definição clara de uma estratégia de combate a esta criminalidade de elevada plasticidade geográfica e que é acobertada, na sua essência, em múltiplos e interconectados pactos de silêncio.

Uma delas, por si só, é no mínimo, desafiadora da capacidade reativa e criativa dos branqueadores de capitais perante o apertar do cerco por parte das instituições internacionais no combate a fenómenos dessa natureza. Refere o Tribunal a existência de uma fragmentação institucional e de uma coordenação deficiente a nível da UE relativamente às ações que se revelam pertinentes adotar no quadro da prevenção do BC/FT e, por essa via, responder aos riscos assinalados.

Desde logo, aponta como crítica a ausência de um supervisor único nessa matéria, dada a diluição de poderes por vários organismos e uma deficiente coordenação com os Estados-Membros que é, também ela, separada.

Para isso, concorre o facto da estratégia europeia desenhada com o objetivo de evitar que o setor bancário seja utilizado para BC/FT assentar, sobretudo, em requisitos legais constantes de

diretivas. É por essa razão, ainda que não a única, que essa estratégia, naturalmente, urge ser repensada, pois ao assentar maioritariamente em diretivas e, nessa medida, ao transferir a responsabilidade da sua transposição para os EM e a responsabilidade principal pelo combate para os organismos de supervisão nacionais, potencia um quadro europeu global não só assimétrico, como incapaz de definir e de garantir a desejável comunicação e implementação de uma verdadeira, efetiva e eficaz estratégia comum.

A disparidade das “legislações nacionais” que no quadro do combate ao BC/FT na UE emerge da discricionariedade conferida aos diferentes Estados nos processos de transposição das diretivas comunitárias, abre profundas fendas na muralha defensiva da UE quanto a esse tipo de criminalidade, deixando a “céu aberto” inúmeros pontos fracos que os branqueadores de capitais depressam se aprestam a explorar e que naturalmente, no final do dia, compromete, significativamente, a sua eficácia.

Mais do que uma boa normação comunitária, o que é necessário é que ela possa ser uniformemente aplicada por todos os Estados-Membros. Assim, parece-nos claro que uma estratégia esclarecida, concertada e acompanhada de uma eficaz normação comunitária, provavelmente por via da emissão de regulamentos e não de diretivas, como aliás sugere o Tribunal, aumenta a possibilidade de sucesso no combate aos branqueadores de capitais e à sua sempre prodigiosa imaginação.