António João Maia, Jornal i

São as pessoas – todas as pessoas! – que são responsáveis por fazer com que os valores aconteçam

Por razões académicas e profissionais, e sobretudo por profundas motivações e convicções pessoais, de cidadania, tenho dedicado alguma particular atenção às questões da ética e da integridade nas organizações, particularmente nas que têm uma natureza pública.

As organizações, públicas e não públicas – qualquer organização! – são integradas por pessoas. Sem elas, as pessoas, e por muito importantes, claros e inequívocos que pudessem ser os propósitos e as normas que regessem uma qualquer organização, ela pura e simplesmente não existiria. Ou melhor, existia mas não funcionava, o que na prática seria o mesmo.

Imaginem – hipótese por si só absurda, admito-o, mas que ainda assim ouso explorar para que vejamos a importância da componente humana nas organizações – uma qualquer organização com propósitos e regras de funcionamento muito claros e muito bem estabelecidos, com instalações, inclusive, mas sem qualquer pessoa que operasse essas regras. Algo como necessitarmos de cuidados de saúde, por exemplo, e ao chegarmos ao hospital … nada, ou melhor, ninguém estar ali sequer para nos abrir a porta, para nos acolher, para nos dizer bom dia, enfim para cuidar de nós. Ou se, depois de nos assaltarem a casa, nos deslocássemos à esquadra da polícia do bairro para apresentar queixa e ninguém lá se encontrasse para nos ajudar, confortar e tentar saber quem teria sido o autor desse crime e recuperar os objectos que tivessem sido furtados. Ou, indo agora para o privado, irmos a um supermercado, ao barbeiro ou ao banco e ninguém lá se encontrasse para nos atender.

Como nos sentiríamos? Como reagiríamos? Como seria a vida em sociedade?

Serve isto para verificar aquilo que já sabemos, que as pessoas são um elemento central – determinante mesmo! – para que as organizações aconteçam.

E, perguntar-se-á o leitor, esta entrada vem a propósito de quê, se tudo isto é óbvio?

Vem a propósito precisamente das vertentes da ética e da integridade, que, como sabemos, são inerentes às relações entre as pessoas. São inerentes à vida em sociedade. São a base e o fundamento da (sã) convivência social.

Somos seres sociais, já sabemos, o que significa que é em grupo que existimos e nos realizamos. Sabemos igualmente que, para que o grupo funcione, têm de existir regras, normas, princípios, mais ou menos formais, mas importantes e necessários para estabelecer e sustentar um quadro de expectativas sobre a actuação de cada um no seio do grupo. Aquilo a que chamamos a normalidade. No fundo para que a existência do grupo não se torne caótica, nem se desagregue, mas para que tenha alguma coerência e propicie contextos de coesão social, de confiança e de segurança. Para que todos os intervenientes se revejam minimamente nessa normalidade e, dessa forma, com o seu contributo activo, validem a importância dessa normalidade e a façam subsistir.

Os valores da ética são o resultado de um processo milenar, que geração após geração os vai moldando e burilando, utilizando-os e ajustando-os do modo mais adequado a cada tempo e a cada circunstância.

Neste processo evolutivo reconhecemos hoje para nós como valores de relevância central: a liberdade, a igualdade, a justiça, a honra, o respeito, a responsabilidade, a honestidade, o carácter, a transparência, e tantos outros.

Mas os valores da ética só fazem sentido se forem operacionalizados. Se forem postos em prática. Se os sentirmos presentes no nosso quotidiano, desde o relacionamento mais simples, como no contexto familiar ou entre amigos e vizinhos, por exemplo, aos mais formais, entre colegas ou entre Chefes e os seu subordinados nas relações profissionais de trabalho, ou mesmo entre líderes políticos, Chefes de Governo ou Chefes de Estado.

Por outras palavras, são as pessoas – sim, somos nós, pessoas de carne e osso, com vulnerabilidades e fragilidades, mas também com reconhecidas capacidades racionais e humanas – que têm de se revelar competentes na concretização desses valores. São as pessoas – todas as pessoas! – que são responsáveis por fazer com que os valores aconteçam. As pessoas são responsáveis pela verificação da integridade. 

Mas, como também bem sabemos, não é assim sempre. Algumas pessoas – uma minoria, por certo – não revelam essa capacidade. Apresentam um menor índice de integridade e, por isso, preferem retirar para si o melhor que o grupo lhes proporciona a cada momento sem dar grande contributo em troca. E sempre que isso sucede, esse conjunto de valores que conferem coerência e estabilidade ao grupo perdem sentido. Tornam-se ocos, uma espécie de falácia. E os restantes membros do grupo, claro, sentem-se defraudados e frustrados.

E esta é que é questão que aqui gostaria de fixar.

É que as organizações podem integrar – e integram! – pessoas com estes perfis de menor integridade. Pessoas capazes de aproveitar todas as circunstâncias para satisfazer os seus intentos, revelando pouca ou nenhuma consideração pelos outros, pela organização e pelos seus propósitos. E mais, estas pessoas podem estar em qualquer posição hierárquica, desde o Presidente ou Director-Geral, passando pelo Dirigente intermédio, pelo Chefe de departamento ou por um qualquer Funcionário de primeira linha da estrutura hierárquica.

Qualquer organização e, dentro dela, qualquer posição hierárquica ou função, está exposta ao risco de, a todo o tempo, poder ser operada por alguém menos íntegro. Por alguém que, por via desse menor índice de integridade, coloque em crise a estabilidade da cultura de integridade da organização, podendo inclusivamente provocar eventuais efeitos de perda de reputação e credibilidade sobre a organização.

Deste ponto de vista, a existência nas organizações de códigos de ética e de conduta é reconhecidamente considerada uma medida de gestão importante e necessária. Por isso as entidades, pelo menos as de natureza pública e as privadas de maior dimensão, têm vindo a desenvolver e a adoptar os seus próprios códigos de ética e de conduta. 

Os códigos de ética e conduta devem preferencialmente ser resultado do contributo de todas as pessoas da organização, no sentido de serem identificados os valores matriciais da organização, e, correlativamente, de se prescreverem as tipologias de actuação a adoptar por todos, incluindo para as funções que impliquem ou pressuponham contactos com terceiros, designadamente utentes, clientes, fornecedores e prestadores de serviços.

Deverá ser um código de ética que assuma uma perspectiva de Integridade 360. Que procure fornecer indicações quanto a condutas esperadas nos relacionamentos de todos com todos. Entre colegas do mesmo nível hierárquico. Entre dirigentes e subalternos. E de todos para com terceiros fora da organização com os quais tenham de se relacionar funcionalmente.

É claro que este pressuposto de amplitude máxima dos códigos de ética e conduta é natural. Todavia e apesar disso, subsistem ainda entidades, públicas e privadas, que parecem desconhecer ou negligenciar essa importância. A recentemente adoptada Estratégia Nacional Anticorrupção 2020 - 2024, presentemente em fase de concretização normativa, vem assumir claramente essa necessidade relativamente a todas as entidades públicas, bem como às entidades privadas de maior dimensão, no que parece ser um sinal positivo quando ao reconhecimento formal da utilidade destes instrumentos na gestão das organizações.

Todavia, a mera existência destes instrumentos de promoção e reforço de culturas organizacionais de integridade não é, por si só, suficiente. É necessário que sejam depois devidamente divulgados e dinamizados junto de todos as pessoas da organização. Todos devem conhecer os pressupostos e os propósitos da sua existência.

O sucesso dos códigos de ética e conduta numa organização depende muito da adesão, do envolvimento e do comprometimento de todos, como é reconhecido por exemplo pela gestora de recursos humanos Susan Heathfield, em Core Values are what you believe.

E ainda assim, com a existência de códigos de ética e de conduta nas organizações e com o envolvimento das pessoas na promoção e aprofundamento de uma cultura organizacional de fortalecimento da integridade, subsistirão sempre pessoas menos íntegras, menos preocupadas e menos envolvidas com a cultura da organização, que, quando tiverem oportunidade, não deixarão de tentar alcançar os seus propósitos em detrimento dos propósitos da organização que (não) servem.