Rute Serra, Jornal i

 

Um robusto e resiliente sistema de controlo interno é um poderoso antídoto da ocorrência de erros, irregularidades e fraude.

A cambaleante convicção de alguns sobre a frutuosa utilidade da prestação de contas em sentido lato tem permitido o trilhar de um caminho errático, com desfechos pouco transparentes esquecidos na espuma dos dias, às vezes até escrutinados nas instâncias fiscalizadoras ou judiciais, mas sobretudo tem alheado os cidadãos da verdade sobre o modo como são geridas as instituições públicas, i.e., como é gerido o dinheiro público.
Longe do tempo de uma contabilidade pública baseada nas «partidas simples», a adesão de Portugal à então denominada Comunidade Económica Europeia (CEE), induziu a aprovação, cerca de quatro anos depois, de um importante acervo legislativo reformista da actividade financeira do Estado com o magno objectivo de rentabilizar a gestão pública. A contabilidade pública foi-se aproximando da privada, e em 1997, foi aprovado o Plano Oficial de Contabilidade-Pública (POC-P), subdividido por planos sectoriais, baseado no método digráfico e num sistema integrado de contabilidade orçamental, patrimonial e analítica, o qual foi sendo paulatinamente e às vezes até com fatuidade adoptado, sem que – e mal – substancial consequência daí adviesse. Foi, porém, neste momento, que o conceito de «sistema de controlo interno» começou a moldar-se.
Previa-se então, recordo, há mais de vinte anos, a obrigatoriedade de as entidades públicas implementarem um sistema de controlo interno que permitisse "a salvaguarda dos activos, a prevenção e detecção de situações de ilegalidade, fraude e erro, a exactidão e a integridade dos registos contabilísticos e a preparação de informação orçamental e financeira fiáveI''.
A asserção geral residia (e reside, agora em sede de aplicação do Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas [SNC-AP]) no facto de que um robusto e resiliente sistema de controlo interno é um poderoso antídoto da ocorrência de erros, irregularidades e fraude, pois permite, a final, a sustentabilidade das operações e das informações inerentes, as quais devem gerar resultados atempados e fidedignos que, por sua vez, deverão ser a estrela polar da decisão do órgão de gestão das respectivas entidades. E a sua publicitação, garante de transparência administrativa.
No caso das autarquias locais, o fundamento é mais amplo: permite o escrutínio dos órgãos autárquicos sobre a racionalidade das opções gestionárias do executivo e o cumprimento assertivo das deliberações e decisões tomadas nas sedes próprias, reflectindo pois, a jusante, a situação financeira e patrimonial de cada autarquia local. Aqui chegados, e em face das conclusões, nomeadamente, do Conselho de Prevenção da Corrupção, que alerta para o facto de mais de metade (51,8%) dos reportes judiciais sobre o cometimento de crimes de corrupção e infracções conexas referirem-se a casos alegadamente ocorridos na Administração Local, questiono-me sobre quantas e quais são as autarquias locais que possuem, para além de qualquer dúvida razoável, um sistema de controlo interno fiável, credível, suficientemente disciplinado e física e normativamente actualizado, que seja efectivamente perscrutado pelos órgãos autárquicos e, em especial, pelos cidadãos, os quais, não esqueçamos, são os principais beneficiários (ou não) de uma gestão financeira e patrimonial saudável e equilibrada.
Mal-grado a convicção expressa no início desta crónica, devíamos, para dizer o mínimo, conhecer os programas de compliance pública a que as entidades estão obrigadas. Porque se tal se reveste de importância indiscutível para a prevenção de atos de corrupção, aqueles que depois do caldo entornado, reprimimos em tom tonitruoso, será que podemos ter, sobre aquela que é a nossa parte neste contracto social, a consciência perfeitamente tranquila?