José António Moreira, Expresso online (096 04/11/2020)

 

 

Muito recentemente, a pedido do Governo, a Assembleia da República aprovou legislação tendente a agilizar o processo de contratação pública. Aceita-se que era necessário atuar no sentido de aliviar a burocracia extrema que está subjacente a qualquer aquisição pública, por mais pequena que seja. De modo especial, no caso de contratos de montante elevado, em que o processo de obtenção de aprovações pode ser tão moroso que, no limite, quando está concluído e a contratação pode ser efetuada o momento e sentido da mesma passou. No decurso do processo legislativo fez-se ouvir um coro de alertas para o risco de tais alterações favorecerem um aumento da corrupção. Compreendem-se estes receios, dado o histórico dos problemas no domínio da contratação pública. Com efeito, nem a draconiana burocracia inerente a essa contratação, assente numa desconfiança patológica em relação ao outro contratante, tem produzido os efeitos desejados, isto é, evitar “práticas ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção” (Tribunal de Contas). O contexto não é, pois, auspicioso: a burocracia não resolve o problema da existência de corrupção na contratação e cria rigidez na gestão da coisa pública; a necessidade de agilização dos procedimentos da contratação pode resultar num aumento de comportamentos ilícitos, pelas brechas de controle que é passível de acarretar. Que solução para este aparente paradoxo, que faça o balanceamento entre essas duas necessidades, a do controlo e a da flexibilidade? Tal solução parece residir num funcionamento (muito mais) célere da Justiça, que permita julgar e punir em tempo toda a entidade que, comprovadamente, tenha adotado comportamento indevido na utilização de fundos públicos. A falta de recursos no aparelho judicial explicará uma pequena parte da ineficácia do mesmo. No entanto, a parte mais substancial desta ficar-se-á a dever a um quadro legal enviesado em favor das “garantias” e da observância de aspetos formais, em detrimento da substância e do interesse social de se fazer justiça em tempo útil. Veja-se, a título de exemplo, o desfecho dos grandes processos judiciais passados relativos à utilização de fundos europeus. Quantos condenados? Quantos processos prescritos, por via das artimanhas que a Lei permitia (e ainda permite) para dilação e protelamento dos processos judiciais? Perguntas cujas respostas são conhecidas. Poderá contrapor-se que a lentidão da Justiça resulta do facto de ser acautelarem os direitos dos arguidos, e que isso é o mais importante. Não se defende que se acabe com tais direitos. Mas, quem foi a grande injustiçada, a que viu as garantias daqueles sobreporem-se às suas próprias? A sociedade considerada no seu todo, os cidadãos que, com esforço, procuram cumprir com as suas obrigações sociais enquanto veem uns quantos locupletarem-se com fundos públicos e saírem incólumes dos processos que (às vezes) lhes são movidos. Portanto, nesta altura em que se espera a chegada de “uma pipa de massa” europeia, o Governo propôs ao Parlamento, e este aprovou, a solução mais simples: aliviar as regras da contratação para poder gastar os fundos no tempo previsto para o efeito. No entanto, esquecendo a outra vertente do problema – mais difícil de corrigir no imediato, reconheça-se – corre-se o risco de abrir a “caixa de Pandora” e soltar todos os demónios que aguardam expetantes o início da corrida ao “ouro”. Por todas as razões inerentes ao contexto pandémico com que a sociedade portuguesa atualmente se debate, levando a atividade governativa a reagir aos problemas que surgem em catadupa, mais do que a antecipar e evitar tais problemas, o alívio das regras de contratação pública foi um passo que, como atrás referido, se pode aceitar como necessário, com a consciência do acréscimo de risco que tal medida irá originar. Porém, era importante que a agenda legislativa passasse a conter uma entrada do tipo “repensar a Justiça e o seu funcionamento”, que venha a ocasionar uma profunda reflexão neste domínio, permitindo dotar o quadro legal de um mais equitativo balanceamento entre as garantias que em processos judiciais são tributadas às entidades arguidas e as garantias que à sociedade, como um todo, são devidas. A não se fazer esta reflexão, e os ajustamentos que daí resultem como necessários, perpetuar-se-á na sociedade portuguesa, em toda a espécie de relacionamento – do Estado na contratualização com as entidades; mas também na contratualização dos cidadãos entre si – a desconfiança endémica e patológica que se instalou a todos os níveis, em que o outro é sempre olhado como desonesto. Com custos imensos, por constranger de modo profundo as relações contratuais e justificar, no caso do Estado, uma burocracia bloqueadora. Essa desconfiança só pode ser gradualmente diluída na medida em que a Justiça seja, efetivamente, o fiel da balança que penaliza de modo ponderado, mas eficaz, quem adota comportamentos ilícitos. A não ter este papel, os agentes potenciais contratantes antecipam todo o tipo de problemas que podem surgir numa relação contratual e, no limite, não contratualizam. A sociedade, como um todo, fica a perder.