Carlos Pimenta, Expresso online (094 21/10/2020)

 

 

1 . Qual é a apreciação que os cidadãos fazem sobre os comportamentos aceitáveis e repudiáveis? Até onde vai essa aceitabilidade? Com o que não concordamos e somos de opinião que não justifica qualquer actuação contra tal e com o que repudiamos veemente? Qual a influência que tem a proveniência dessa violação na nossa aceitabilidade ou repúdio? Eis algumas simples questões para que não temos resposta no nosso país, donde se pode concluir que muito pouco sabemos sobre a ética vigente na nossa sociedade, embora saibamos que essa é a referência fundamental para algumas dinâmicas vitais se queremos sociedades mais coesas, mais preparadas para construir o futuro. Esses dados seriam essenciais numa sistemática e adequada politica antifraude em que prevenção seria a via fundamental de construir o futuro.

Não basta considerar as leis, quer porque aquelas são apenas uma das referencias das fraudes, quer porque podem haver leis que desencadeiam reacções contrárias às esperadas, quer porque há muito pouco conhecimento dos labirintos usados pelos cidadãos para contornar as leis, quer ainda porque podem haver algumas que visam essencialmente promover o ignóbil, o repudiado socialmente (e muitos podem ser os casos).

Provavelmente poderíamos concluir que é um elemento essencialmente cultural diferente conforme a região, a profissão, o sexo, os rendimentos, a estrutura do agregado familiar, a proveniência do acto a apreciar. Enfim de muitas outras variáveis que eventualmente nem suspeitamos.

2. Admitimos que grande parte da sociedade está contra a corrupção, nomeadamente a proveniente de sectores nevrálgicos da sociedade: dos sectores com maior poder proveniente da influência opinativa que têm, da sua riqueza, da sua actuação política.

Admitimos que a produção e tráfico de droga é considerado por muitos uma enorme chaga social, assim como o são o de órgãos humanos à custa da miséria da vida de muitos dos nossos concidadãos. E o mesmo se poderá dizer da venda de armas e do serviço de mercenários, dos muitos milhões de cidadãos sujeitos à escravidão.

E a lista do que normalmente é considerado a parte da economia ilegal poder-se-ia ampliar: tráfico de pessoas de uns países para os outros; produção e venda de produtos alimentares que não o são (“da fruta à carne e do açúcar ao café”), comércio de animais em extinção, medicamentos falsificados, depósito de resíduos tóxicos no fundo dos oceanos, negócios do petróleo com terroristas, circulação de notas falsas, prostituição e pedofilia, roubos de identidade e de verbas depositadas, etc. E a lista podia-se ampliar, bastando para encontrar tráficos ilegais pôr a imaginação a trabalhar e encontrar actividades que à custa de muitos de nós sejam rentáveis para alguns.

Actividades que certamente poderão ser encaradas por alguns dos cidadãos de forma diferenciada quer porque o conhecimento da sua existência tem de ser prévio quer porque o peso atribuído à sociedade e à nossa posição específica vai mudar a forma como valoramos a situação, quer como os políticos actuam, e se justificam face a eles.

O facto de muitas dessas actividades serem conduzidas sistematicamente por organizações criminosas transnacionais, frequentemente comandadas ou com a colaboração de elites económicas e políticas das nossas sociedades, permitem que muitos dos cidadãos mais não sejam que joguetes dessas dinâmicas, votando, lutando, manifestando-se com determinados objectivos. Por isso temos assistido em vários países a movimentos fascistas, logo ditatoriais, utilizando essas dinâmicas.

3. Como são utilizados os milhares de milhões de dólares resultantes dessas actividades ilegais? Reinvestindo nas actividades ilegais? Provavelmente algum (ex. adquirindo barcos para depósito de resíduos tóxico no fundo dos oceanos) mas será uma ínfima parte. Aumentando a riqueza de elites criminosas? Sem dúvida, aumentando as desigualdades sociais e fazendo com que mentes perversas possam utilizar mais recursos na corrupção, no financiamento de partidos políticos, e em tudo o mais que queiram.

Contudo, grande parte dessas luxuriantes verbas são para actuar nas actividades legais: comprar empresas, aproveitar as privatizações, jogar na bolsa, emprestar dinheiro aos Estados e à empresas, enfim actuar como grandes homens do negócio. Podemos então perguntar como é que isso é possível? Basta para tal proceder ao branqueamento da sua riqueza, o que muitos chamam de lavagem de dinheiro

É “um processo que tem como objectivo a ocultação de bens, capitais ou produtos com a finalidade de lhes dar uma aparência final de legitimidade, a qual tem essencialmente três fases: colocação, circulação e integração.

A colocação consiste na introdução dos bens, produtos ou capitais que se pretendem branquear no sistema económico-financeiro, utilizando os mais diversos meios ou instrumentos.

A circulação é a que normalmente exige mais especialização e capacidade criativa. A circulação implicará um conjunto de procedimentos que provoquem grande rotatividade de titularidade dos bens, com vista ao maior afastamento possível entre a sua origem e forma de obtenção, e aquele que finalmente ficará na posse dos mesmos.

Finalmente temos a integração que se completa quando os bens ou valores ilícitos surgem com a aparência de lícitos e são usados livremente pelo criminoso, à frente de todos, muitas vezes até com elevada consideração social.

A integração no mundo dos negócios é tanto mais fácil quanto maiores são as dificuldades financeiras das empresas, quanto mais dependentes do financiamento estejam os Estados. Quanto maiores forem as crise do capitalismo, e maiores forem as políticas restritivas, maiores são as possibilidades de, literalmente, «entregar o ouro ao bandido».

4. Obviamente que o branqueamento da riqueza é das situações mais gravosas para o presente e o futuro da humanidade: permite um aumento da criminalidade organizada, nesta fase de globalização essencialmente transnacional, e a sua propriedade sobre as actividades de que todos dependemos.

Por isso, e porque o seu combate é parte da luta contra o terrorismo, muito são os instrumentos, de combate contra o branqueamento, nacionais e internacionais: convenções de instituições supranacionais, inclusive das Nações Unidas, diretivas nacionais e internacionais várias, instituições de fiscalização e repressão nacionais em abundância.

Contudo podemos dizer categoricamente que a «montanha pariu um rato».

5. Provavelmente a razão fundamental deste insucesso resulta de uma instituição legalmente instituída pelos Estados, os paraísos fiscais. Permitem e facilitam a lavagem de dinheiro, na medida em que tal se pratica em cada um deles e porque o facto de constituírem uma rede internacional amplia imensamente essa capacidade.

Como tal se justifica? Eis a pergunta em aberto para pensarmos e agirmos.

Para encontrarmos uma resposta, caso exista, terminaríamos com a listagem das quinze principais regiões que são paraísos fiscais (segundo a instituição que mais tem estudado a situação, a Tax Justice Network):

DR