Marcus Braga, Jornal i

 

A realidade, mesmo que indigesta, é o objeto de trabalho dos auditores

Giovanni Domenico Cassini (1625 –1712), italiano naturalizado francês, foi um talentoso matemático, engenheiro e  astrónomo, tendo se destacado por combate à corrupção, de modo geral a avaliação do resultado destes é restrita a uma simples operação aritmética: os custos operacionais de seu funcionamento em contrapartida ao retorno financeiro recuperado pela sua acção. Uma visão de que o órgão precisaria se pagar, tendo seus custos recuperados pela sua atividade, no bom estilo do retorno sobre o investimento.

Os seus custos operacionais representam a soma de despesas relacionadas a salários, aluguéis, mobiliário e insumos relacionados às actividades de controle, como combustível, passagens aéreas e verbas indenizatórias, entre outras. E, o retorno financeiro se dá, basicamente, por meio de receitas obtidas por despesas irregulares evitadas ou pelo ressarcimento destas, imposto pela acção do controle. Uma equação simples, que se pode desconsiderar fatores invisíveis, mas nem por isso menos importantes.

O primeiro tipo de custo são os chamados “custos de transacção”. São aqueles relacionados ao desenho das políticas públicas, de todo o processo de acordos, monitoramentos e de supervisão entre as partes envolvidas, por meio do estabelecimento de salvaguardas. São custos relevantes no ofício da prevenção e do combate à corrupção. Porque os órgãos com essa finalidade, de um modo geral, imputam modificações no processo de gestão das políticas públicas, que aumentam esses custos. Eles são aumentados por mecanismos de controle que as tornam mais morosas, por envolverem verificações e etapas processuais adicionais.

Esses custos, além de invisíveis, se diluem ao longo dos processos e do tempo, sem serem percebidos seus efeitos pelos órgãos que promovem a probidade. Mas que, mesmo assim, impactam diretamente os custos da política e a sua efetividade, precisando serem considerados. Faz-se necessário a empatia dos agentes do controle, sair da visão do controlador e se colocar no lugar do gestor. E ainda, no lugar do cidadão, beneficiário da política, para que os avanços da luta contra a corrupção não sejam victóriaspírricas[1].

O outro factor pouco considerado é o custo de oportunidade. Trata-se do custo de alguma coisa em função da oportunidade renunciada. Se algo é verificado, outra cousa deixa de ser olhada.  É uma decorrência das limitações dos sistemas, ou seja, da própria realidade. Assunto relevante no que se refere a prevenção e o combate à corrupção. Porque os meios operacionais são sempre acanhados frente às demandas por investigar atos corruptos. O que gera a necessidade de escolhas, que precisam ser baseados em critérios relacionados ao risco e ao volume financeiro envolvido, de modo a otimizar essas acções.

No caso, dado que as acções de combate e prevenção à corrupção, por envolverem uma rede de atores com atribuições específicas, que por vezes se arrastam por anos. Assim. o processo ter sido o primeiro a observar a divisão dos anéis de Saturno, o que o levou a ser homenageado, através da atribuição do seu nome à sonda espacial Cassini-Huygens, lançada em 1997 para estudar especificamente esse mesmo planeta.

Sobre a vida desse eminente personagem, tão pródiga de realizações, nos interessa nestas linhas um fato ocorrido no tempo em que ele desempenhou as funções de astrónomo na corte de  Luís XIV ("O Rei Sol"), na qual, a pedido do Rei, ele utiliza um método próprio para determinar a longitude, com a finalidade de medir o tamanho do território francês de forma precisa,  pela primeira vez.

Pelos seus cálculos, o país acabou sendo consideravelmente menor do que o esperado, fato que causou apreensão a Cassini, pois o Rei tinha uma imagem de maior dimensão das suas terras, imerso na habitual vaidade real. Quando então ele apresenta as suas conclusões sobre as dimensões do território francês à corte, o Rei sorri e diz que Cassini lhe: "custou mais territórios do que todos os meus inimigos!”

Cassini, contrariando as suas próprias expectativas, ao final manteve a sua predileção junto à majestade. Entretanto, trazendo para os dias atuais, tem-se que os auditores governamentais, em ofício com características similares, sofrem ao evidenciar em seus relatórios verdades inconvenientes que contrariam o senso comum e a visão idílica dos dirigentes de ocasião, em especial em relação aos resultados da implementação das políticas públicas.

A realidade, mesmo que indigesta, é o objeto de trabalho dos auditores, que certificam processos e resultados, atestando pelos seus métodos próprios factos em relação a critérios, embutidos aí os fracassos, as fraudes e os desvios de finalidade. Uma função ingrata, mas necessária, para que os processos decisórios no nível estratégico dos governos se pautem por opiniões independentes, que possibilitem correções de rumo e responsabilização de atores, assentando a gestão sobre informações confiáveis e certificadas.

Essa atuação é a base de um dos conceitos mais caros as democracias modernas: a accountability, na qual se busca valorizar o agir responsável dos  agentes públicos, de modo que a população tenha informações sobre a sua atuação, sobre as justificativas de suas escolhas, e essa mesma população tenha a capacidade de sancioná-los quando se desviam do pactuado. E a auditoria, bem como a transparência, são dois elementos essenciais para a promoção dessa accountability, como mecanismos de limitação da assimetria informacional dos políticos eleitos em relação a população, bem como da burocracia em relação àqueles políticos.

Mas o século atual trouxe mais um complicador para essa questão. Em um contexto de muitos produtores de informação e de rápida difusão destas, apercepção da realidade tem se tornado difusa, mesmo diante das mais robustas evidências. No fenómeno da chamada “pós verdade”, lacunas da realidade são preenchidas com a ficção que atenda aos vieses convenientes, e fatos objetivos perdem a sua capacidade de influenciar a formação da opinião pública em relação aos apelos de caráter emocional ou crenças pessoais. Um ambiente de informações falsas, manipulações e incertezas, o que afeta, inclusive, a gestão das políticas públicas, desde a distribuição de recursos orçamentários até a decisão pela manutenção destas.

Cassini enfrentou um vaidoso rei, mas que era amante da ciência. Os auditores que se debruçam sobre os atos e fatos da gestão pública necessitam, no final dessa segunda década do Século XXI, enfrentar, na construção de diagnósticos sobre a gestão pública, além da resistência dos governantes sobre as verdades que emergem, a dificuldade de se estabelecer uma percepção razoável dessa realidade, na qual informações sobre a gestão sofrem de interpretações difusas e carregadas de apelos emocionais.

O viés domina as falas, tornando os relatórios dos auditores poderosos demais ou desacreditados, em um extremo que dificulta a precípua tarefa de fornecer, de modo independente, subsídios que agregam valor a gestão, tornando-a mais eficiente e proba. O alarmismo favorece o foco em detalhes, e perspectivas globais se veem prejudicadas por visões apocalípticas, que terminam por minar a confiança nas instituições, sem servir para apontar rumos de correção e ajuste.

Paradoxalmente, mais acesso à informação fragilizou os processos de avaliação da realidade. Luís XIV pediu a Cassini um diagnóstico. Pediu porque tinha necessidade deste para seus projetos reais, e se surpreendeu pelo resultado contrariar as suas expectativas. Mas seguiu respeitoso ao trazido pelo seu confiável pesquisador. Os dirigentes atuais também precisam de avaliações independentes, pois se a verdade não chegar pela auditoria, chegará, por vezes tarde demais, pela sanção externa da população, ou por riscos que se materializam, causando prejuízos, inclusive políticos.

Apenas cerca de 40 anos antes de Cassini ter arrancado um leve sorriso do Rei Sol, outra personalidade italiana, Galileo Galilei, renegava a visão heliocêntrica diante de um tribunal inquisitório, saindo-se com a sua famosa expressão “Eppur si muove”.Mais um exemplo de que a realidade continua se impondo, com seus efeitos concretos, mesmo diante das conceções do poder formal estabelecido, ou de manipulações de uma era de redes sociais.  Problemas não se resolvem apenas pela opinião, e carecem de diagnósticos bem assentados que subsidiem decisões e ações. A crise na qual ainda vivemos, da Covid-19, é uma prova cabal disso.

Eis o desafio democrático que se apresenta, num contexto que afeta a accountability, e um dos mecanismos de sua instrumentalização: a auditoria governamental. Um cenário complexo e que exigirá daqueles que têm como ofício produzir informações de forma independente sobre a gestão pública, uma reflexão sobre a sua forma de comunicar os resultados, olhando sempre as possibilidades interpretativas de cada informação produzida, para que entre os extremos de um diagnóstico de “corrupção sistémica” e de um “governo maravilhoso”, se preservem apontamentos que contribuam para políticas menos onerosas e mais efetivas, que resolvam problemas, salvem vidas e adicionem valor.


[1]Diz-se vitória pírrica ou vitória de Pirro a um êxito obtido a alto preço, tendo como efeitos prejuízos irreparáveis.