Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)

 

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Ao longo  das dezenas de crónicas escritas para este jornal temos dedicado algumas à iniciativa legal dos Estados de criar paraísos fiscais (e judiciários), vulgo offshores, centrando a atenção no caso de Portugal e de alguns dos principais, neles constatando a importância dos países desenvolvidos (EUA, Reino Unido, União Europeia e Suíça) na sua existência e funcionamento.

Creio ser inequívoco o seu caracter negativo: repartições fiscais indevidas entre países (com graves consequências sobre a qualidade dos serviços públicos e condições de vida das populações, dívida pública e capacidade de actuação política do Estados, etc.), ligações estreitas ao aumento da lavagem de dinheiro (facilitando a criminalidade organizada, o crime das elites políticas e económicas, intensificação do terrorismo, etc.), a fragilidade das normas contabilísticas (possibilidade de aumento da contabilidade criativa, manipulação dos preços de transferência, fingimento da propriedade, etc.), aumento das desigualdades económicas e sociais entre entidades e países.

Não é por acaso que muitas instituições internacionais são cotra os offshores nas declarações oficiais (o que frequentemente não corresponde à sua actuação) e muito poucos se atrevam a justificar a sua existência.

Do estrito ponto de vista técnico há, fundamentalmente, dois caminhos para acabar com os offshores: aberta e declaradamente ou a via reformista, com a adopção desde já de medidas que embora parcelares possam atenuar a sua existência e actividade.

É dentro desta segunda via que vários autores defendem ”que os relatórios de actividade e de contas das multinacionais de- vem ser públicos e descrevendo a actividade realizada em cada país (ou região), de acordo com um conjunto de regras contabilísticas claramente definidas”, ou “travar os fornecedores de serviços nos paraísos fiscais (bancos, auditores, sociedades de advogados, enfim “facilitadores”), através da via de mais exigências e controlos nos seus próprios países, fazendo--se o levantamento das actividades em todas as suas filiais à escala mundial.” [1]

Em relação a estas medidas (e outras possíveis) para além da vontade política, “a primeira questão de que nos devemos interrogar é da viabilidade técnica de determinar os registos contabilísticos por empresas existentes em cada país quando hoje aquelas estão «fragmentadas» por muitos países. Por outras palavras, hoje as empresas têm facilidade em instalar-se em qualquer país ou região. Ser uma multinacional não é situação de alguns mas de muitas empresas. Isso faz com que haja produção, repartição de rendimentos e trocas nas diversas filiais e entre elas. Se se pretende que os impostos sejam repartidos pelos diversos países, e não apenas centrados na empresa-mãe ou em qualquer «trust» num paraíso fiscal, é necessário que se saiba o que foi produzido e repartido em cada país, que essas informações estejam na posse das autoridades fiscais respectivas e se reconheça internacionalmente que o Estado pode e deve actuar. Para tal é, em primeiro lugar, imperioso que haja a capacidade técnica de registar as operações realizadas por países (podendo ser combinada com outras medidas fiscais consideradas justas e oportunas). Em síntese “tal é possível tecnicamente e tem de ser implementado” [2].

O recente estudo publicado pelo OBEGEF analisa detalhadamente esta questão na União Europeia no conjunto desta medida e procura quantificar a situação. [3]

Contudo há um conflito insanável:

  1. Os relatórios por países da actividade das multinacionais seria uma via reformista importante para reduzir a actividade dos offshores.
  2. Não há vontade política para o fazer (os relatórios não são divulgados publicamente) e as decisões no governo da União Europeia são por unanimidade.

Há que limitar politicamente a decisão, mecanismo habitual em muitas decisões em que convém não negar abertamente o ser-se contra. Há que adiar adiar, adiar. É o que ressalta claramente de um recente artigo de investigação do jornal O Público [4] [5].

 “É ou não é óbvio para qualquer um, que haveria de se aviar a lei para ontem? Pois há quatro anos que está em cima da mesa um projecto de lei da Comissão Europeia e que os governos andam a bloquear a directiva“ [6]

 

 

Notas:

[1] Ver Murphy, R. (2017). O livro negro dos offshores. Lisboa: Clube do Autor.

[2] Ver Pimenta, C. (2018). Os offshores do nosso quotidiano. Coimbra: Almedina.

[3] WP nº 64, de Miguel Viegas; António Dias: A Declaração por País e a oportunidade de um imposto unitário (https://obegef.pt/wordpress/wp-content/uploads/2020/10/wp064.pdf)

[4] “O estranho e secreto veto à lei contra a evasão fiscal pelas multinacionais

[5] Uma decisão «impossível» com unanimidade: Considerando as empresas multinacionais dos EUA actuando na União Europeia, tal poderia significar um ganho da massa tributável para Portugal de cerca de 1100 milhões de dólares. Em contrapartida três países seriam campeões na perda de massa tributável (Holanda, Luxemburgo e Irlanda) no total de 60 mil milhões.”

[6] Ver o artigo “Os nossos hipócritas e cobardes governos” de Ana Moreno.