José António Moreira, Expresso online (090 23/09/2020)
O Novo Banco (NB) tem sido presença permanente no dia-a-dia dos portugueses. Só o recente crescimento do número de indivíduos infetados pela Covid 19 o atirou, momentaneamente, para segundo plano
É inequívoco que, desde o primeiro momento, todos os que, por ação ou omissão, intervieram nos destinos do NB procuraram envolvê-lo numa cortina de fumo que ofuscasse o que verdadeiramente aconteceu (está a acontecer) e o que existia (ou desapareceu). Hipocrisia e desonestidade intelectual são traços que marcam tais intervenções, a começar pelo Governo e a acabar na generalidade dos partidos com assento na Assembleia da República. Cada qual acrescenta mais umas quantas achas molhadas à fogueira, ajudando a tornar mais espessa essa cortina de fumo, ao ponto de o comum dos cidadãos já nem saber se o banco efetivamente existe ou se não passa de uma defumada ilusão.
A cortina começou a formar-se, necessariamente, no tempo do Grupo BES, quando a administração deste, com a conivência dos auditores da altura, foi procurando esconder as perdas do grupo e do banco BES. Há dias, num artigo de opinião, um cronista colocava em dúvida que os ativos (bens e direitos) que ficaram no NB estivessem realmente sobreavaliados. É óbvio que sim. Está nos livros: quando uma organização começa a ter dificuldades financeiras a primeira medida adotada para as esconder passa por reduzir o montante de imparidades e provisões a registar na contabilidade, com isso contribuindo para mostrar resultados por via da sobreavaliação dos ativos. Portanto, quando o Governo e Banco de Portugal deram à luz o NB, a partir do BES, passando para aquele o que existia de “bom” neste, os ativos “bons” estavam empolados, registados acima do seu valor de mercado. Naquele fim de semana de todas as decisões, em que decorreu a cisão do BES, a cortina de fumo que tudo envolvia não terá permitido uma adequada perceção da realidade. E se nessa altura tal perceção minimamente existia não devem ter existido condições, políticas e financeiras, para limpar desde logo o que de podre existia em tais ativos “bons”. Porém, em vez de se explicar isso aos portugueses, optou-se por alimentar a cortina de fumo, para tornar tudo (ainda) mais opaco.
O tempo foi passando e chegou a altura da venda do NB. Como seria de esperar, o potencial comprador não se limitou a olhar para a instituição através do fumo que a envolvia. Dotou-se de meios, foi ao âmago da mesma, esquartejou cada um dos ativos, mediu o que eles não valiam, o que de podre possuíam. Chegou-se ao célebre número dos 3,9 mil milhões de euros, o valor estimado do empolamento dos ativos, caucionado pelo Governo e pelo Banco de Portugal, entre outras instituições. Portanto, este número não representou uma benesse para o comprador. Representou aquilo que, com a conivência dos auditores, estava registado no balanço (fraudulento) da instituição, mas que, em verdade, não existia. A partir da fixação de tal número, o desfecho esperado também está prescrito nos livros: o comprador deixa de ter qualquer incentivo para se esforçar em vender os ativos (com podridão) por um valor superior ao fixado. Neste contexto, não se percebe a surpresa (muito menos a indignação) de tantos quando as menos valias daí resultantes passaram a ser anualmente registadas e o NB passou a reclamar do Fundo de Resolução (eufemismo para contribuintes) o ressarcimento da sobreavaliação dos ativos à data da venda.
Quando se esperaria que o NB passasse a brilhar ao sol, liberto da cortina de fumo que há muito o envolvia, o Governo e o Banco de Portugal criaram uma nova, escondendo o contrato de venda e as responsabilidades que o mesmo poderia vir a trazer aos cidadãos contribuintes. Um logro, para o qual não se vê, nem se obteve uma justificação (o sigilo bancário não parece justificação para o ato). Dificilmente este comportamento deixaria de ter consequências futuras. Mais tarde ou mais cedo o assunto voltaria à luz do dia, para assombrar um Governo que, neste caso, desde o primeiro momento, nunca pautou o seu comportamento pela transparência. O discurso do “sem custos para o contribuinte”, que em outras circunstâncias também se veio a verificar ser um logro, foi parte da cortina de fumo. E como a “mentira tem perna curta”, o Governo (pior, o país) está a pagar agora a fatura, entalado entre um contrato que não pode deixar de cumprir – tudo o que se disser em contrário é mais fumo para os olhos dos cidadãos – e a pressão dos partidos-parceiros (da ex-geringonça).
Estes partidos lançam agora uma nova cortina de fumo, procurando ofuscar a responsabilidade e conivência com o desenrolar do processo ao longo do tempo. Depois de terem convivido pacificamente com o assunto e a mentira, em modo participativo, vêm agora dizer “não se pague. Nem mais um cêntimo para o NB!”. Paralelamente, exigem auditoria atrás de auditoria, na esperança de conseguirem uma que branqueie, num curto sumário executivo, a nódoa que o apoio político passado deixou.
Talvez tenha passado ao lado, distorcida por tanto fumo, mas o facto é que não se ouviu ou leu uma única palavra de reflexão, em particular por parte de quem enche a boca a pedir auditorias e mais auditorias, sobre o custo de cada uma delas, direta ou indiretamente pagas pelo erário público, pelos impostos dos cidadãos. A desonestidade intelectual subjacente ao lançamento de cortinas de fumo tem sempre custos para os cidadãos, nomeadamente financeiros. Aspeto que, pelo menos aparentemente, a ninguém preocupa.
Aguarda-se o próximo episódio, que será difundido muito brevemente, aquando da apresentação do orçamento do Estado para 2021. Há uma curiosidade imensa em perceber como é que a próxima cortina de fumo sobre o NB será lançada. Tal como as anteriores, não será isenta de custo. Por isso, deixa-se um pedido ao sr. Primeiro-Ministro: por favor, inscreva no próximo orçamento dotação financeira para mandar efetuar uma auditoria que permita apurar os custos financeiros para o país (deixem-se de lado os de natureza diversa) resultantes da falta de transparência e desonestidade intelectual dos políticos no que respeita ao assunto NB. Pede-se, ainda, para evitar desconfianças relativas ao eventual conflito de interesses entre o auditor e o auditado, que se adjudique essa auditoria a uma instituição que, inequivocamente, não apresente relacionamentos passados com as partes auditadas. Não é por desconfiança. É apenas para que não se acrescente mais fumo onde já tanto existe.
Entretanto, enquanto ela não é concretizada, os pedidos continuam a chegar, engrossando a lista de auditorias em espera. Agora é o PSD que – para ser diferente? – pede dose dupla, uma auditoria e uma comissão de inquérito. Que fumarada isto vai provocar…