Carlos Pimenta, Expresso online (088 09/09/2020)

 

1. A realidade das coisas tem muitos elementos que não são considerados por nós, porque são desnecessários para a nossa vivência. Por exemplo, quando tencionamos ir trabalhar numa mesa nós dizemos “nós vamos trabalhar para aquela mesa”. Dispensamo-nos de descrever “aquela mesa” em pormenor (largura, altura, material de que é feito, características deste, etc.), acontecendo o mesmo com trabalho (o que vamos fazer, como, utilizando o quê e mais uma vez descrevendo até ao pormenor cada um dos objetos, etc.) O mesmo se poderia dizer em relação aos outros elementos (“nós”, intencionalidade,). Isto é, a realidade (“realidade em si”) é sempre muito mais do que aquilo que eu considero (“realidade para si”). Esta diferença existe sempre, seja qual for o tipo de conhecimento.

Tal é inevitável para se reter da complexidade (do ser e das relações entre eles) o que é essencial em cada momento. É isto que nos permite viver, e nesse sentido se encaminham todas as fases da nossa aprendizagem. Aprendemos a simplificar pela abstração e a expressar o resultado desta por meio de palavras que a exprime ("mesa", "trabalho", "nós", no exemplo referido). Por isso as palavras são fundamentais, e devem ter um significado semelhante para o "emissor" e o "recetor". Se nós, no exemplo anterior, tivéssemos dito “iremos esbofar para a tábula daqui” dizíamos o mesmo, segundo o dicionário de sinónimos, mas não haveria comunicação entre nós e o outro a quem nos dirigíamos! Mais, essa comunicação tem raízes culturais diferentes, especificidades terminológicas locais e a probabilidade de desencontros é imensa.

Vivendo numa sociedade em que a informação tem um papel fundamental as palavras utilizadas, sobretudo as que são referidas de forma sistemática em determinadas situações específicas, é importante que todos nós assumamos uma postura de reflexão e crítica, utilizando este termo num sentido amplo (donde resultará uma aceitação ou rejeição ou uma postura intermédia recheada de hipóteses e considerações complementares).

2. Na problemática da fraude há, para nós, três conceitos que exigem a nossa análise cuidadosa: conflito de interesses, transparência e independência. Já tendo aflorado o primeiro, abordado cientificamente o segundo, abordaremos o terceiro nesta crónica.

Tomamos esta posição porque ela surge frequentemente associada às auditorias:

No momento em que foi apresentada, com grandes atrasos, ambiguidades do texto (percetíveis e encobertos pelo seu secretismo) e provavelmente com importantes incongruências e conflitos de interesse), a auditoria ao Novo Banco, parece-nos oportuno refletirmos um pouco sobre o assunto.

3. Os auditores (os indivíduos sobre os quais recai o trabalho) podem ter uma boa ou má formação ética familiar, deontológica ou social, mas ao fazerem parte de uma empresa estão inevitavelmente inseridos numa rede de possíveis conflitos de interesse (por exemplo, manter ou não o emprego, acatar ou não as instruções hierárquicas, outras).

Mesmo que se admita que aqui não surjam problemas, há três outros níveis em que poderão surgir:

Se estas são as possibilidades existentes, se a entidade contratante é o Estado, deveria este tomar cuidados suplementares para que estas situações não surgissem, o que no caso referido não aconteceu.

4. Enfim não há auditorias independentes. Pode haver auditorias honestas ou desonestas, mas nunca ditas independentes.

Por isso o meu amigo quando ouvia falar em auditorias independentes perguntava sempre: “ao serviço de quem?”.