Pedro Moura, Expresso online (083 08/08/2020)

Penso não errar ao afirmar que a esmagadora maioria da população se afirma defensora do direito universal à Liberdade de Expressão. Todos, sem exceção, devem poder dizer o que querem, a censura não é de todo desejável, e sim, este conceito é um pilar fundamental de uma sociedade democrática e livre (supostamente a sociedade em que estas mesmas pessoas querem viver).

Todavia, penso também não errar na opinião de que um grande número destes defensores da Liberdade de Expressão o não são na realidade. O conceito de Liberdade de Expressão tem-se transformado cada vez mais em ‘Liberdade de Expressão, mas (…)’. Ou seja, Liberdade de Expressão, mas devidamente condicionada para não ofender, indignar ou ir contra as opiniões ou sensibilidades de ninguém, sobretudo da miríade de grupos identitários que cada vez mais reclamam para si um ‘espaço de conforto e legitimidade’ que não pode ser questionado por nada nem ninguém.

Talvez seja surpreendente para muitos, mas ‘Liberdade de Expressão, mas…’ não é Liberdade de Expressão, nem de perto nem de longe.

O mundo politicamente correto, confortável e fofinho da ‘Liberdade de Expressão, mas…’ é um mundo que reduz não só o potencial de desenvolvimento da sociedade, ao censurar e eliminar a discussão e o debate de ideias e posições potencialmente antagónicas, mas que sobretudo reduz a própria liberdade de cada um, em favor de modelos de comportamento e discurso público moralmente ‘compatíveis’ com os tais inúmeros movimentos que reclamam a proibição da livre expressão de certas ideias e tipos de discurso.

A ‘ofensa' não pode ser limitadora da Liberdade de Expressão, pois ao ser a ‘ofensa’ eminentemente subjectiva, dependente do juízo de cada um, não se pode constituir em critério de julgamento ou proibição do direito de outrem em manifestar o que e como quiser.

Também não é com a Limitação da Liberdade de Expressão que se vão erradicar opiniões totalmente absurdas e ridículas (avaliadas subjetivamente) ou a falta de maneiras e civilidade na expressão das mesmas. Gente parva e mal educada combate-se com mais argumentos, com mais discussão, não com proibições e censura de opiniões.

A quem se sinta ofendido com a livre expressão dos outros e se enrole para a posição confortável (e espinhosa) de ‘indignado’, que experimente antes argumentar e expor as suas ideias de forma persistente, civilizada e inteligente. Dá mais trabalho, obviamente, pois a indignação é tão, tão fácil, e fica tão, tão bem (há sempre outros indignados para se formar um grupo de indignados) que é difícil a um indignado não sentir uma gratificação imediata por mostrar que está do lado certo da estória (e por vezes também da História).

Há que ter a noção que a Liberdade de Expressão é um dos mais fundamentais bens comuns de uma sociedade democrática, pois é a base que torna possíveis todos os outros direitos. Sem Liberdade de Expressão não é possível a Democracia. E infelizmente vemos exemplos por todo o mundo de ‘Liberdade de Expressão, mas…’, fruto de cedência de políticos, comunicação social e outras entidades à ditadura do politicamente correto.

O próprio Estado tem de ser o primeiro garante da Liberdade de Expressão, assegurando a cada cidadão o direito à não-censura Estatal ou de qualquer outra espécie. O Estado só deve intervir quando houver uma clara e imediata ameaça à ordem pública ou a outros cidadãos, não quando alguém se sente ofendido ou indignado pelo que outros dizem, por muito aberrantes que possam ser as afirmações.

Arrepio-me quando o Estado Português noticia que tem intenção de começar a ‘monitorar’ discurso de ódio na Internet, identificando autores (!), mensagens, etc, e isto provavelmente ao abrigo da defesa da Liberdade de Expressão, veja-se o absurdo. Isto é uma clara violação dos princípios mais claros de Liberdade de Expressão. A estupidez não se combate com proibição, ao contrário do que muitos ’novos Torquemadas’ possam continuar a achar. Como refere Mick Hume no seu livro ‘Direito a Ofender’, “a exigência de que sacrifiquemos a livre-expressão em nome da liberdade é uma reviravolta teatral que merece sair com apupos do palco da História”.

A Liberdade de Expressão pressupõe discordância e luta, por vezes encarniçada, de ideias e argumentos. Se os critérios da ofensa e do desconforto subjetivos fossem suficientes para limitar a expressão, ninguém poderia falar, escrever ou publicar.

Faço aqui um ‘desvio’ para os temas gémeos da fraude e da corrupção: poucos fenómenos haverão que se alimentem tanto da falsa liberdade de expressão como estes. O ‘ver e calar’ é dos melhores modus operandi acessórios a estas práticas, que não só as permite como as legitima, através da sua racionalização por quem as perpetra. Quantas publicações e jornais já não viram as suas receitas de publicidade condicionadas pelos ‘favores’ de publicarem (ou não publicarem) certas matérias? Quantos empregados ‘incómodos’ já não terão sido preteridos, ‘encostados’ ou mesmo despedidos por alertarem para situações anómalas? Quantas, oh quantas vozes já se calaram pela nossa cultura de ‘respeitinho’ por tudo e por todos, degradando progressivamente a qualidade das nossas empresas e instituições? O espaço da fraude e corrupção são as sombras, o silêncio.

Termino com uma citação clássica nestes tópicos, em jeito de (triste) brincadeira: tenho ideia que para muitos a tradução da célebre citação de Voltaire “Je ne suis pas d’accord avec ce que vous dites, mais je me battrai jusqu’à la mort pour que vous ayez le droit de le dire’ deva ser algo como "Discordo do que dizes, e bater-me-ei até à morte para que não tenhas o direito de o dizer”.