Óscar Afonso, Dinheiro Vivo (JN / DN)
O período de confinamento imposto na sequência da pandemia Covid-19 foi mau para todos, mas foi especialmente mau para quem vive no interior.
Em Portugal, a distribuição geográfica da actividade económica, social e cultural entre o litoral e o interior é demasiado assimétrica e, por consequência, o mesmo acontece com a distribuição da população. O interior é envelhecido, rural, desertificado, estagnado, deprimido, humilde, trabalhador, associado a uma secular vida de miséria, e completamente esquecido fora de períodos eleitorais. Apesar de todos os constrangimentos que historicamente se têm imposto ao interior, representa cerca de 70% do território nacional e ainda cerca de 30% da população.
O período de confinamento imposto na sequência da pandemia Covid-19 foi obviamente mau para todos, mas foi especialmente mau para quem vive no interior. A pobreza de recursos públicos, de infraestruturas e de alternativas ditou que muitos estudantes se tenham visto privados de aulas, que o produto de muita actividade económica tenha ficado sem escoamento, e que muita população tenha mergulhado ainda em mais solidão.
Curiosamente, ou talvez não, pouco se fala dos graves problemas que assolam o interior actual. Bem sei que o relato da realidade é sempre determinado pelo poder dos vencedores. Sei também que a liberdade democrática permite que haja jornalismo idóneo, mas também é verdade que tal não é suficiente para impedir a tendência para ignorar o interior vencido, que nada “reclama”, que dificilmente acede ao poder político, que não controla mercados, não financia campanhas eleitorais e não compra favores.
Claro que os recursos são escassos e que é difícil atender a todos os pedidos, sobretudo aos pedidos de quem, por educação secular, aceita todos os sacrifícios e nunca “reclama”, mas o que se passa no interior é efectivamente alarmante e devia merecer maior solidariedade. O que se espera dos governos é acção e atenção pelos destroçados pelo economicismo, dos que para quem viver é sobreviver. Se assim não for, como tem sido, acelera-se o ciclo vicioso de pobreza e da desertificação. Sem aulas “decentes” condena-se o futuro, sem apoio ao escoamento de produções – como, por exemplo, do vinho e do azeite – condena-se o presente e o futuro, e a solidão vai matando em proporções crescentes.
Já não era justa a desigualdade de oportunidades sentida no interior, desde logo pela inferior qualidade dos (cada vez piores) serviços fornecidos pelo Estado. Não era aceitável, como tem sido hábito, o contínuo encerramento de serviços no interior do país (veja-se o encerramento de diversos balcões da CGD ou de estações dos CTT, com o argumento de insuficiente número de utentes). Não era igualmente aceitável que uma elite dirigente e técnica de um sem número de organismos com funções de regulação, controlo e fiscalização, vivesse na sombra de actividade produtiva concentrada no interior. Só para citar alguns exemplos, veja-se os casos do Instituto da Vinha e do Vinho, do Instituto dos Vinhos do Porto e Douro, a administração e todos os serviços da EDP, Iberdrola e outras. Veja-se ainda o caso das barragens, consideradas como “investimentos de desenvolvimento local”, mas que efectivamente apenas criam o posto de trabalho do vigilante durante a sua fase de exploração. Estas, como todas as explorações do interior, nada têm contribuído para a melhoria da massa crítica social dos respectivos lugares.
O interior que nada pede e que nunca contribuiu para desgraças, merece bem mais atenção, porque tem recursos mais ou menos abundantes que devem ser aproveitados localmente e valorizados, desde o património cultural (monumental e imaterial) aos espaços naturais, desde produtos agrícolas singulares aos recursos do subsolo. Em algumas industrias tem até alguma tradição. Investimentos pontuais, intempestivos, sem qualquer possibilidade de adensamento do tecido económico e social nunca foram a solução. Que importa, por exemplo, investir no turismo se não há recursos humanos apropriados e se se corta nos serviços de saúde?
Os habitantes do interior são também cidadãos indispensáveis. Por isso, para além do fosso que vem sendo cavado face à média nacional, no imediato, merecem que o governo seja sensível ao alargamento do fosso educacional com a média nacional, que ajude no escoamento de produções e que esteja atento ao modo de vida de muita gente cada vez mais sozinha. É verdade que a passagem do sobreviver para o viver não se transforma por decreto, mas porque o sobreviver tem expressões quantitativas alarmantes, porque há um mau estar que exige e aconselha intervenção, o interior merece actualmente especial atenção.
Merece, no fundo, beneficiar do princípio da solidariedade inter-territorial, como, sobretudo, o litoral tem beneficiado dos países mais ricos da União Europeia. Isso faz-se, por exemplo, invertendo a lógica de desqualificação dos serviços e infra-estruturas existentes. Faz-se também por via do reforço de serviços, com a educação e a saúde à cabeça, e da atractividade de alguns centros urbanos do interior, estrategicamente posicionados. Faz-se, ainda, olhando para os recursos e capacidades endógenas e pensando o respectivo desenvolvimento a partir do aproveitamento desses recursos e dessas competências.