Raquel Brito , Visão online

Devemos crer na intenção do bem coletivo pelo legislador, da mesma forma que devemos expectar pelas consequências do interesse economicista individual.

A legislação, per se, não é determinante no combate à fraude. Por mais que se legisle, nunca será o suficiente para extinguir este flagelo.

Mas o problema é ainda mais complexo quando, a coberto das mesmas, se desenvolvem crimes.

A esta questão, do ramo da sociologia, podemos associar os escritos pioneiros de Robert K. Merton. E, posteriormente, com o desenvolvimento economicista e do crescente capitalismo, conhecemos a denominada “Lei das Consequências não Intencionais”.

Sem pretender excessivos desenvolvimentos sociológicos e/ou filosóficos, importa referir que os pressupostos desta linha de pensamento centram-se na falácia que se desenvolve em volta do civismo e da coesão social versus o espírito do lucro individual.

Vejamos, na Índia colonial britânica, o conhecido “efeito cobra” que ilustra exemplarmente esta realidade. Reza a história que, preocupado com o aumento de cobras venenosas, o governo britânico decidiu oferecer uma recompensa monetária por cada cobra morta. Medida que revelou, no imediato, bastante sucesso. No entanto, rapidamente se desenvolveu um mercado paralelo de “viveiros” de cobras com intuito de obtenção de maior proveito financeiro. Descoberto o esquema, as cobras foram libertadas e, consequentemente o seu número aumentou.

Em território nacional, e do ponto de vista essencialmente social, assistimos atualmente às consequências da Lei nº 30/2000. Que, com a sua entrada em vigor em junho 2001 descriminaliza o consumo de substâncias ilícitas, trazendo passados 20 anos, consequências não intencionais. O consumo a céu aberto.

Mais recentemente, em contexto de pandemia, e com vista à simplificação dos processos, foram adotadas medidas excecionais e temporárias de resposta relativas à contratação pública.

Medidas que autorizam, organismos públicos, a recorrer ao ajuste direto, que os dispensam de autorização prévia para aquisição de bens e serviços, que os isentam da fiscalização do tribunal de contas (em alguns contratos), que lhes permitem a adjudicação, acima do preço base, sempre que se verifique que o concurso ficou deserto.

Não estão em causa as medidas adotadas, nem a intenção subjacente às mesmas. O que não é possível prever serão os efeitos perversos destas medidas. Quando as leis legitimam as ilegalidades.

Devemos crer na intenção do bem coletivo pelo legislador, da mesma forma que devemos expectar pelas consequências do interesse economicista individual. Seremos naïfs se acreditarmos que hedonismo moderno se compadece com a aurea mediocritas expressa na literatura clássica pela procura dos prazeres simples da vida, a paz e a tranquilidade.

A História está repleta de situações que refletem esta questão associadas à capacidade humana de subverter o desígnio das leis.

Em suma, o que poderá ocorrer inesperadamente não pode ser desconsiderado. Ou a solução para o problema, poderá transforma-se num problema ainda maior. Deveríamos procurar ser mais proativos e menos reativos. A formação cívica é essencial na determinação dos interesses coletivos em fenómenos como a fraude e a corrupção. Ante a preocupação em legislar, deve anteceder a preocupação em formar.