Tiago Marcos, Jornal i

“Faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço”

Como sabemos, a humanidade vive desafios sem precedentes devido à pandemia do covid-19, i.e., num espaço de poucas semanas fomos forçados a adaptar os nossos hábitos económico-sociais, que eram cada vez mais similares aos de uma aldeia global, permitidos pela circulação de pessoas e bens quase sem restrições, para hábitos circunscritos por um protecionismo regional e limitativo de que não há memória.
Naturalmente que, salvo raras exceções, algumas delas bastante mediáticas e noticiadas, todos percebemos a importância desta adaptação comportamental, uma vez que nada é mais importante do que proteger a vida humana, independentemente dos custos económico-sociais inerentes à referida adaptação forçada.
Ainda assim, e tendo em conta que o exemplo deve vir de cima (conforme nos diz o ditado popular, bem como as melhores práticas governativas), importa ponderarmos como as medidas implementadas têm sido adotadas e exemplificadas pelos nossos líderes. Será que o seu comportamento em tempos de pandemia tem sido ético ou será que estamos perante uma situação de “faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço”?
Na minha opinião, infelizmente, estamos perante a segunda situação, senão vejamos…
Face à pandemia, em especial durante o passado estado de emergência, fomos adequada e continuadamente bombardeados com a listagem de medidas a seguir, das quais destaco a de permanecer em casa e evitar concentrações de pessoas, em especial em espaços fechados e / ou se fizermos parte de grupos de risco. Por sua vez, com a evolução da situação, e com a definição de medidas para a reabertura da economia, passamos a ser bombardeados com a obrigatoriedade de usar máscara com ou sem viseira (apesar de inicialmente esta utilização ter sido desaconselhada e não tendo sido apresentada uma cabal explicação para esta contradição). Importa realçar que, na minha opinião, este bombardeamento de informação é adequado, face ao decretar de uma pandemia, apesar de a mensagem nem sempre ter sido coerente.
No entanto, parece que estas medidas não se aplicam a todos (contrariamente ao apregoado), em especial quando falamos de líderes político-sindicais, muitos deles que aparentemente fazem parte dos denominados grupos de risco, atendendo a que sempre se puderam continuar a concentrar em espaços fechados sem se mascararem (conforme a noticiada frase “Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?”). Esta situação verificou-se, não só para celebrar datas especificas, mas também para a realização de reuniões ordinárias de trabalho que tiveram lugar, por exemplo, na Assembleia da República. Não foi decretado, por estas pessoas, que o teletrabalho deve prevalecer sempre que possível, evitando-se as reuniões presenciais?
De igual modo, após decretada a obrigatoriedade de uso de máscara, continua a verificar-se a realização das referidas reuniões de trabalho sem que todas as pessoas, incluindo as que aparentemente fazem parte de grupos de risco, utilizem a dita máscara (ou a mantenham colocada quando falam).
Mas, as contradições continuam… como se pode explicar que, quando se procura retomar a atividade económica que abrandou, após se ter criado um regime especial para os doentes crónicos (por apresentarem mais risco), alguém se lembrou que os diabéticos e hipertensos devem ser excecionados por alegadamente estarem compensados, exceto se deixarem de estar compensados? Caso não sejam a exceção da exceção e até o passarem a ser, estes cidadãos devem correr mais riscos do que os demais, mesmo após ocorrerem óbitos de pessoas nestas condições? Quem decide quem é a exceção da exceção? Vai existir uma categoria de doentes “pouco” crónicos?
Parece-me ainda relevante questionar como pode ser aceitável que, num momento em que os Estados estão em risco de colapso económico e social, os nossos líderes percam tempo a discutir o regresso do futebol profissional, mas não das outras modalidades desportivas ou espetáculos de risco equivalente. É esta uma atividade essencial?
Para além destes que, na minha opinião, são típicos exemplos da crónica falta de ética frequentemente verificada nos líderes das sociedades modernas, realço que estes mesmos líderes apregoam aos sete ventos que não cumprir as medidas de confinamento implementadas é uma questão de quebra de deveres cívicos e / ou de falta de ética (o que me parece perfeitamente correto). Cada leitor poderá tirar as suas ilações, mas, tendo em conta o comportamento dos nossos líderes, assumindo que são pessoas responsáveis, estes deverão ser imunes a contagiar e ser contagiados, sendo essencial para a sociedade que não cumpram as regras que implementam e apregoam.
Face a estes e outros exemplos, parece-me óbvio que continua a crise de liderança que é tão típica do nosso país (e não só), mesmo em tempos em que os cidadãos mais precisam de uma cultura ética forte para se sentirem compelidos a adotar comportamentos que protegem a nossa sociedade. Felizmente, parece-me que, neste caso, o exemplo “tem vindo de baixo” e os nossos líderes têm muito a aprender com a grande maioria dos nossos cidadãos que têm cumprido as indicações de segurança.