Nuno Guita, Jornal i
Nos próximos anos importa explorar o potencial que sistemas de gestão de Compliance eficientes oferecem à integração das actividades empresariais e do Estado.
Foi no passado dia 5 de dezembro, por ocasião da apresentação do Relatório Anual de Monitorização, que ficamos a saber que 78% das recomendações constantes do Código de Governo das Sociedades do IPCG, são acolhidas pelos seus destinatários directos. Haver, em tão puco tempo, uma tão ampla adesão a este instrumento de autorregulação, parece um excelente sinal no caminho da boa condução dos negócios. O facto do Código, sendo voluntário, emanar da sociedade civil a quem também se destina, fez-me questionar sobre o grau de cumprimento das normas do Estado por parte dos seus organismos e Sector Público Empresarial?
É claro que estamos a falar de dois universos muito distintos, quer quanto à sua dimensão, quer quanto à sua natureza. Mas sendo as leis do Estado de cumprimento obrigatório, e poder-nos coagir a todos, não seria também expectável que ao menos cumprisse o próprio aquilo que impõe aos outros?
Esta discussão pode parecer tão vazia quanto que levou à aprovação do Código de Conduta do Governo em 2019. Pois infelizmente todos nos habituámos a viver com leis que o Estado não cumpre, desaplica, ou simplesmente cuja regulamentação fica na gaveta e assim produz o mesmo efeito. Ao mesmo tempo que assistimos à alteração de Planos de Ordenamento para viabilizar um determinado investimento a aprovação da Resolução da Assembleia da República n.º 3/2018, que retira a reserva de Portugal à Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, beneficia os funcionários portugueses daquela Organização, e em particular o presente secretário geral!? Caso para recordar a máxima Maquiavélica: “aos amigos os favores aos inimigos a lei”.
Implicações para Sector Empresarial do Estado
As empresas públicas, de acordo com uma perspectiva tradicional (e inalterada), não se sujeitam aos ditames da sociedade civil (nem mesmo da economia de mercado), mas tão-somente à orientação política, porque a sua existência se fundamenta na vontade do Estado querer assumir para si certas tarefas, funções e/ou serviços.
Como já referi anteriormente quanto ao Compliance, este refere-se ao cumprimento das leis e regulamentos que afetam as organizações. Podemos aumentar a utilidade desta definição se a alargarmos aos princípios introduzidos numa empresa, aos seus instrumentos de governo e formas de organização que visam garantir o cumprimento pela própria empresa, órgãos de gestão e trabalhadores, das regras, e em particular das leis. Daí decorre um foco menor na letra da norma e mais nos princípios, formas organizacionais e instrumentos para sua observância, ou seja, na circunstância de que Compliance descreve na realidade um sistema.
A acção do Estado através das empresas públicas
Na economia o Estado actua também por meio de empresas públicas, sobretudo a nível local, mas também na dimensão intermunicipal e até nacional. Tal acção económica ocorre frequentemente através das figuras das Empresas Públicas, institutos públicos e fundações, mas também sob a forma comercial de sociedades por comerciais.
Essas empresas públicas operam normalmente no mercado existente e, portanto, estão sujeitas às regras geralmente aplicáveis. Tal como as empresas privadas, também elas devem observar os requisitos legais das empresas (incluindo a chamada business judgment rule), as leis da concorrência, do ambiente (que é particularmente relevante p. ex.: na gestão de resíduos), fiscalidade e do direito penal, entre muitas outras. No entanto a responsabilidade das empresas públicas não se limita à mesma medida que das privadas, isto porque não raras vezes os seus responsáveis assumem um agravamento da responsabilidade por via da sua qualidade de funcionário previsto na lei penal. Nesses casos qualquer conduta corruptiva, por exemplo, assume uma relevância criminal mais grave do que se cometida pelos pares do sector privado. Mas também se verifica nas regras da contratação e aquisições e outras áreas um impacto regulatório substancialmente mais vigoroso no sector empresarial do Estado do que no puramente privado. A tudo isto acresce que qualquer desvio, em especial se tiver contornos criminais, provoca de imediato uma reacção pública muito mais negativa, encerrando maiores riscos reputacionais. Isto compreende-se pelo facto de estas empresas estarem sujeitas ao controlo da tutela pública. Ainda acrescem as respostas políticas, que se espera das empresas públicas, pelo que faz todo o sentido exigir um eficiente cumprimento ou Compliance, que cubra todos estes aspectos.
No entanto é importante referir que, estando as empresas do Estado sujeitas a requisitos de cumprimento idênticos ou até reforçados, a lei dispõe para além do direito comercial apenas de um sistema de direito público que influencia o controle sobre as empresas do Estado (p. ex. as leis orçamentais, entre outras).
O Estado e o controlo do Cumprimento
Tem sido difícil alargar um debate solido no âmbito do governo societário e da gestão eficiente, sobre os sistemas de gestão de Compliance nas empresas privadas, mormente sê-lo-á para as empresas públicas, mas é imperioso. Será de considerar as interessantes funcionalidades que a configuração de um sistema desses poderia trazer, com vista à prossecução do bem-geral atribuído ao Estado e também ao seu sector empresarial. Nos próximos anos importa explorar o potencial que sistemas de gestão de Compliance eficientes oferecem à integração das actividades empresariais e do Estado. É comummente sabido que o controlo do Estado exercido sobre as actividades concretas das suas empresas, através dos mecanismos de vistos prévios, inspecções e sanções, esbarra frequentemente com os seus limites financeiros e humanos.
Assim sendo, não deveria o Estado ter a iniciativa, eventualmente legal, de instituir um Código de Corporate Governance (público) seguido de uma norma sistematizadora para o Compliance Corporativo? Reconheço que é uma proposta uns quantos passos à frente da realidade actual, tal o nosso atraso! Havendo um sistema de gestão eficiente que se ocupasse do Cumprimento, ainda seriam possíveis nesse contexto, privilégios e favores? Qual a relevância que se daria ao estabelecimento (mesmo que retroactivo) de um sistema de Compliance na adjudicação de contratos públicos ou qual na sua ausência?
Como exemplo prático da vantagem para todos poderíamos olhar para o „Compliance Assurance Process-CAP” nos EUA. Sendo um Processo de natureza fiscal, este integra o histórico de gestão eficiente do Compliance na fórmula de resolução de diferendos tributários, antes de iniciar a severidade executiva da administração tributária. Apenas as empresas com histórico positivo é que têm acesso, o que promove a gestão de uma cultura de transparência e rigor, pois é evidente a vantagem dum procedimento menos oneroso.
Um outro exemplo pode passar pela contratação pública, em que o estabelecimento de um sistema de Compliance poderá vir a ser um pré-requisito para participar.
Resumindo
O objetivo desta breve reflexão é apenas descrever o “Compliance” como um desafio para todo o sistema jurídico e instar à sua estruturação mais ampla na interação entre empresas (privadas ou públicas) e o Estado. Para além da perspectiva dominante que ainda é jurídica de direito comercial, o conceito Compliance possui uma dimensão interdisciplinar e deve por isso merecer outra atenção também por parte das escolas de gestão.
Nesta época de início de ano, fica sempre bem arriscar desejos ousados com vista à prosperidade.
Assim sendo, a todos nós: Votos de bom Compliance