Óscar Afonso, Dinheiro Vivo (JN / DN)
Neste negócio estranho, certamente motivados por fundos europeus, que serve uma elite e prejudica tantos, há ainda razões de sobra para acreditarmos que a legislação tem vindo a ser “preparada/cozinhada” por forma a favorecer todo o processo
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Não pretendo discutir a estranheza com a suposta “clareza” – para usar linguagem do ministro do ambiente – com que ocorreu a entrega de uma licença com direitos exclusivos de mineração de lítio, na zona de Montalegre, a uma empresa constituída três dias antes da decisão e que não tem nenhum histórico de atividade ou know-how na mineração e produção de lítio. Independentemente dos considerandos que o ministro do ambiente possa fazer em termos de linguagem, a verdade é que “sim”, a entrega da licença “cheira” e “cheira” muito mesmo “a esturro”. Como é possível que um negócio tão sensível esteja centrado numa empresa que: (i) Ainda não tem atividade e já está envolvida em processos nos tribunais por litígios entre os sócios! (ii) No projeto que submeteu ao governo se comprometeu a apresentação um capital social de um milhão de euros, mas que afinal são só 50 mil euros! (iii) Apresenta como "consultor" financeiro um ex-governante socialista! (iv) Nasceu com a morada de uma junta de freguesia controlada pelo PS!
O relatório do grupo de trabalho também faz referência à necessidade de garantir uma economia social e a exploração ambientalmente sustentável dos recursos geológicos. Mas depois, enfim, todas as recomendações e propostas focam apenas a sustentabilidade económica direta do projeto. Esperava-se uma análise financeira verdadeiramente independente dos custos associados à minimização dos impactos, não apenas em termos de restauração ecológica em superfície, mas fundamentalmente no que diz respeito às águas e lamas contaminadas, bem como subprodutos sem potencial de reutilização. Também se esperava encontrar uma análise da pegada ecológica, incluindo as emissões de gases de efeito estufa associadas ao processo de transformação, cujo custo pode representar 1/5 dos custos operacionais da produção de concentrados de lítio.
Em suma, o grupo de trabalho, cuja independência coloco em causa, concluiu que o mineral de lítio de Portugal é económica e tecnologicamente recuperável. Porém, esqueceu (como sempre acontece com o interior) a região e os que lá vivem e deu pouca atenção às restrições ambientais, algo que não deve acontecer se se quiser criar uma estratégia de longo prazo, capaz de contabilizar todos os custos associados. Cada estágio do ciclo de vida de um mineral acarreta riscos ao meio ambiente e à população. A contabilização dessas externalidades pode dobrar ou triplicar o preço da exploração, potencializando a reciclagem e os segundos usos. Além disso, os verdadeiros impactos negativos são muito maiores que os números sugerem, não apenas porque alguns impactos não foram levados em consideração, mas também porque alguns deles, apesar de identificados, dependem do clima instável ou ainda não estão traduzidos em números. Contabilizar esses impactos tornaria certamente as fontes de energia renováveis, juntamente com investimentos em métodos de eficiência e armazenamento, economicamente competitivas em relação aos combustíveis fósseis. Em particular, é importante de uma vez por todas entender como os impactos da extração e processamento afetarão o ambiente e saúde humana na região, uma vez que é aí que tudo terá lugar.
O crescente uso e preferência por veículos elétricos terá, sem dúvida, fortes impactos económicos imediatos, especialmente no caso de lítio e outros metais necessários para a construção de baterias. No entanto, essa tendência aparentemente altruísta e genuína tem muitos efeitos perversos, colocando muita pressão nesse recurso escasso e na sua capacidade de responder à procura. O futuro da extração e processamento de lítio teria de garantir boas empresas, responsabilidade social e ambiental, incluindo recuperação e restituição ambiental de área explorada para ser usufruída pela sociedade, em conformidade com a legislação em vigor. Em Portugal, no entanto, tal desiderato lança muitas dúvidas e incertezas se tivermos em conta o passivo ambiental que resultou da atividade extrativa anterior, revelando-se o Estado sempre incapaz de o evitar. E não foi (apenas) a legislação que falhou...!
Há ainda quem diga que seria importante não concentrar a grande quantidade de impactos negativos de extração e processamento em apenas alguns locais. Se Portugal fosse um país que possuísse desertos como o de Atacama (Chile) ou o deserto de Vitória (Austrália) poderíamos, aí sim, escolher. Por tudo o já referido, mas também porque se trata de um país pequeno, com um território bastante humanizado, e um povoamento na maior parte dos casos disperso, não é ambiental e socialmente, na minha opinião, defensável (e sustentável) a exploração mineira “a céu aberto”. A única opção certa é, naturalmente, não haver! No caso português, a pouca fé no governo reforça essa opção.
Neste negócio estranho, certamente motivados por fundos europeus, que serve uma elite e prejudica tantos, há ainda razões de sobra para acreditarmos que a legislação tem vindo a ser “preparada/cozinhada” por forma a favorecer todo o processo. Se assim não fosse, a legislação deveria, no mínimo, ser alvo de uma análise muito séria e independente.