Rute Serra, Jornal i

Laura Codruţa Kövesi, a mulher que, com mão-de-ferro, liderou durante cinco anos o organismo de combate à fraude e corrupção da Roménia

O processo de integração europeia tem-se desenvolvido ao longo dos anos, com avanços, recuos, hesitações, passos rápidos e saltos mais ou menos arrítmicos. Ainda assim, a antiga vontade de construir uma Europa democraticamente unida, sólida e solidária e ao serviço do Homem, impregnou o espírito comunitário pela demanda de um verdadeiro projeto civilizacional.

Um dos momentos mais significativos daquele processo nos últimos tempos, ainda que em Portugal tenha passado ligeiramente despercebido apesar da sua importância, foi a instituição da Procuradoria Europeia com base no artigo 86º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, orgulhando-se Portugal de ter abraçado o projeto desde o primeiro tiro de arranque. Para já, de fora ficam as competências investigatórias de crimes graves de natureza transfronteiriça, limitada que está a ação penal daquela entidade à investigação das infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União – crimes como fraude fiscal, branqueamento de capitais ou uso indevido de fundos europeus.

O desafio é, não obstante, exigente e as consequências na arquitetura judiciária nacional serão inevitáveis. A variabilidade geométrica do espaço onde coabitarão Ministérios Públicos com estatutos heterogéneos, a que se soma a independência interna e externa da Procuradoria Europeia relativamente às instituições europeias e diferentes autoridades nacionais, subordinando-se apenas às regras da cooperação reforçada, faz pressupor uma tensão complexa, suscetível, caso afrouxe a vontade política, de cativar o sucesso da medida. O entretecer das legislações nacionais e europeia pode ainda suscitar dificuldades no que concerne às medidas de investigação, à produção/admissibilidade da prova, aos direitos fundamentais de suspeitos e arguidos ou até relativamente às regras de controlo judicial dos atos praticados.

No quem é e vai ser quem, Portugal mantém em aberto a discussão sobre os candidatos que poderão vir a ocupar o lugar de Procurador Europeu, a nível descentralizado (pois que a nível nacional atuarão os Procuradores Europeus Delegados). As regras procedimentais de seleção e designação para aquele cargo foram estabelecidas, depois de inquietações terem sobressaltado alguns, através da recentemente publicada Lei n.º 112/2019 de 10 de setembro, possibilitando que indivíduos oriundos das duas magistraturas nacionais possam ser designados, depois de ouvidos pela Assembleia da República.

Já para a cúpula da estrutura, a competição foi renhida. Foram três os nomes apurados em short-list, selecionados de entre vinte e quatro candidatos. O que mais polémica suscitou foi o da romena Laura Codruţa Kövesi, a mulher que, com mão-de-ferro, liderou durante cinco anos o organismo de combate à fraude e corrupção do seu país, tendo sido responsável por levar a julgamento dezenas de titulares de altos cargos públicos e políticos e pela condenação a quatro anos de cadeia do antigo primeiro-ministro romeno Adrian Năstase. Com este empenhamento, não tardou que, expetavelmente, se tornasse demasiado inconveniente. A sua demissão do cargo não haveria, contudo, de manchar a aura de boa reputação que, entretanto, construiu. O que lhe veio a valer inclusive o apoio de França na corrida, num volte-face relativamente ao seu próprio candidato, Jean-François Bohnert, aquele que inicialmente mais votos recolheu dos embaixadores nacionais junto da União Europeia. Acresceu a esta saga, o facto de o governo romeno ter estado profundamente empenhado numa campanha destrutiva da candidatura da sua nacional.

Foi finalmente há dias conseguido o imperativo consenso entre Parlamento e Conselho europeus, e a escolha final recaiu sobre a mediática procuradora romena. Mas se analisarmos à lupa, quer o desenvolvimento do processo de seleção, quer o perfil da primeira líder da Procuradoria Europeia, fica a convicção de que vai haver muita boa gente com medo de Laura Kövesi. E ainda bem.