Oscar Afonso, Dinheiro Vivo (JN / DN)

Certas forças e personagens políticas gozam de tanto gabarito e beneficiam de tanta impunidade que se abrem portas à prepotência e à corrupção

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Confrontado com tanta hipocrisia, hoje, finalmente, não resisti a partilhar factos que, a meu ver, revelam que nos tratam como mentecaptos e parvos. É ou não assim quando:

- Ouvimos o primeiro-ministro, com memória curta, criticar o líder da oposição por ter ido de férias durante a greve dos motoristas?

- Ouvimos ministros, também com memória curta, acusar o anterior governo de ter cortado no investimento, ter feito cativações e ter aumentado impostos?

- Assistimos à humilhação de motoristas por patrões e governo, e curiosamente, ou talvez não, assistimos também à colaboração estratégica dos media, dos supostos defensores dos trabalhadores, a CGTP, a UGT, o PCP, o BE e o PS, e agora até do ministério público?

- Assistimos à insinuação de que greves “boazinhas” são as apoiadas pela CGTP e UGT porque as outras são motivadas por “obscuros objetivos políticos”, pelo que trabalhadores que ousem “soltar-se das amarras” de centrais sindicais partidárias devem ser abandonados a sua sorte, mesmo havendo desrespeito pelo direito à greve?

- Ouvimos que o aumento salarial dos motoristas faria disparar o preço dos combustíveis? Ora pensemos: partindo do princípio que seria totalmente pago pelos consumidores e não absorvido por nenhum dos “players” ou repartido por todos, os adicionais 700 mil euros anuais, que até pagariam IRS e contribuições para a Segurança Social, seriam impercetíveis nos 5 mil milhões de euros de receitas fiscais do Estado ou, até, nos 1 mil milhões de euros de lucros das petrolíferas e redes de distribuição.

- Assistimos à forma como o poder político, com a ajuda dos media, voltou a opinião pública contra uma classe que luta pelos seus direitos? Esperaria que a opinião pública se revoltasse contra tudo o que corrói o país; por exemplo, a corrupção, o nepotismo, os atrasos da justiça, os problemas na saúde, nos transportes e na generalidade dos serviços públicos, assim como contra as falências dos bancos, ou a fuga aos impostos.

- Ouvimos ministros apontar para a necessidade de investigar baixas médicas porque há que defender a utilização criteriosa, prudente, competente e transparente dos recursos da Segurança Social, mas paralelamente sucedem-se casos à la Raríssimas?

- Trabalhadores fazem greve para pagar mais impostos e contribuições para a Segurança Social, mas enfrentam um governo que patrocina práticas que permitem a fuga aos impostos e uma autoridade tributária que assobia e faz de conta que não vê ou sabe?!

- Ouvimos governantes afirmar que poderão não aceitar pareceres da Procuradoria-Geral da República se não forem favoráveis aos amigos?

- Ouvimos ministros afirmar que, trabalhadores com salário decente com 14 horas de trabalho diário têm de cumprir a lei, porque a lei é clara e é para ser cumpridas doa a quem doer, mas que é absurda a interpretação literal da lei quando está em causa provável amigismo e nepotismo? Que Estado tão forte com os fracos e tão fraco com os fortes!

- Depois de quatro orçamentos de Estado aprovados pelo PS, PCP e BE, nos enganam com a devolução de rendimentos, em especial aos mais pobre e desfavorecidos, quando aos poucos a quem devolveram alguma coisa retiraram muito mais, e aqueles a quem deram muito são, em boa verdade, os menos desfavorecidos e necessitados?

- Ouvimos dirigentes desses três partidos “assobiar para o lado” face aos inúmeros maus resultados das políticas praticadas – que num cenário de fase alta do ciclo foi implacável na degradação geral dos serviços públicos, na inexistência de uma obra pública relevante ou de uma simples reforma, mas alargou o atraso no contexto da União Europeia (UE), voltou à fase de mais endividamento externo e gerou a maior carga fiscal de que há memória?

- Assistimos à evolução das cotações do barril de petróleo e dos câmbios Euro/Dólar para concluir que, enquanto o custo petróleo baixou para menos de metade face a 2008, o preço ao consumidor aumentou 12%? Se, ao longo da legislatura, o preço tivesse acompanhado o custo do petróleo e com a fiscalidade praticada pelo anterior governo, deveríamos estar a pagar 96 cêntimos por litro, pelo que nos estão a cobrar mais 48 cêntimos por litro!

- Ouvimos defender o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas, ao mesmo tempo, o ministério das finanças “trava” tudo e todos os dias somos confrontados com notícias que dão conta do SNS estar a cair aos bocados? Se se quer melhorar o SNS proíbam-se políticos, governantes, funcionários públicos e famílias de recorrer a serviços de saúde privados e, em pouco tempo, o SNS será aprimorado porque em tudo opera a máxima “para nós e nossos amigos tudo, para inimigos nada e para os outros cumpra-se a lei”.

- Ouvimos o Presidente da República pedir tempo para perceber o que, em cada catástrofe, se passou? Já se terá percebido o que se passou em Pedrógão, Oliveira do Hospital, Castanheira de Pera, Tondela, Góis/Arganil, Monchique, Mação, Vila de Rei, Tancos, CGD, BES e as acusações da UE de que somos quem menos cumpre as recomendações e deliberações para combate à corrupção ou é muita coisa para ser "percebida"?

- Assistimos ao contraste entre o que a oposição dizia todos os dias sobre os incêndios no tempo do anterior governo e o que, subitamente, passou a afirmar desde outubro de 2015, apesar das mortes, da maior área ardida de sempre e das habitações destruídas?

- Assistimos à pompa perdulária do governo – diz-se, por exemplo, que o primeiro-ministro tem 11 motoristas e 62 membros no seu gabinete?! Na Suécia, por exemplo, cada governante recebe-se um robusto código de ética e o único político com direito a um carro – não a uma equipa de futebol! – é o primeiro-ministro.

- Se aceitou que o BE tivesse ditado as políticas de Educação, Segurança Social e muitas áreas da Economia, para além de toda a agenda política dita “fraturante” só para satisfazer as ambições do primeiro-ministro e dos seus?

- Assistimos a promessas para tudo consoante a plateia? De repente é prioritário melhorar os serviços públicos, cortar na dívida pública, reforçar o investimento público, diminuir impostos, apostar na ciência, educação, igualdade e alterações climáticas, assim como combater à corrupção. Se a vontade é tanta porque não se começou já?!

- Se governa ao sabor da onda mediática e se manipula a onda mediática quando não serve? Curioso, ou talvez não, nem uma palavra dos media contra a incompetência do governo que no final de contas foi quem, nos últimos 4 anos, se esqueceu de dar a instrução primária as duas pobres gémeas da Amadora. Faz isto sentido num país a sério?

- Apesar de tudo, ainda assistimos ao endeusamento deste PS de 2019 que, embriagado pela hipótese de uma maioria absoluta, é igual àquele PS de 2009, cuja soberba atirou um país para o abismo? Tudo igual, até os elogios do Financial Times!

Certas forças e personagens políticas gozam de tanto gabarito e beneficiam de tanta impunidade que se abrem portas à prepotência, à inépcia e à corrupção. Não há dúvida que é tudo uma questão de instituições, que organizam a sociedade para valorizar profissionais da pequena intriga, hipócritas e estrategas chicos-espertos. Padecemos de submissão a um conjunto de indivíduos privilegiados, arregimentados em bandos e movidos por interesses comuns, não por acaso alheios aos interesses do cidadão comum.