Maria Amélia Monteiro , Visão online
Agora, com a Empresa na Hora, era tão fácil fazer nascer novas empresas para consultar três ao mesmo tempo e cessar a atividade logo que tivesse esgotado o limite legal de contratar.
Desde pequeno almejou atingir o lugar que, finalmente, ocupava: estava no conselho de administração de uma empresa pública que gere milhões de euros.
Era um cargo de muita responsabilidade, é certo, mas também de muito poder. Afinal de contas, era ele quem decidia, em primeira linha, quem contratar para o quadro de pessoal, que bens e serviços adquirir e que obras realizar.
Os constrangimentos legais e financeiros eram apertados, bem sabia, mas, desde que cumprisse formalmente as regras, nada havia a apontar e nenhuma responsabilidade lhe poderiam assacar. A primeira regra de ouro era, sem dúvida, criar uma forte aparência de legalidade. Para isso, só tinha que se rodear de uma boa equipa que dominasse a legislação aplicável e as técnicas de gestão e de contabilidade, de modo que as prestações de contas preenchessem todos os cânones legais e não levantassem qualquer tipo de suspeitas.
Desde que a priori se ponderassem os riscos, só havia que arranjar meio de os anular, utilizando criteriosamente as zonas cinzentas da lei. Para isso, contava com um jurista que recrutara e que era de confiança, a quem cabia fazer a ponte com o escritório de Advogados que já contratara. Afinal de contas, este escritório integrava reputadíssimos juristas atuais e anteriores deputados a quem poderia apelar sempre que surgissem dúvidas ou obstáculos. Claro que tinha recorrido ao ajuste direto para os contratar: afinal de contas era uma questão de confiança técnica e pessoal e não podia arriscar um procedimento concorrencial, não fosse aparecer algum desconhecido com uma proposta que dificilmente deixaria de ser a escolhida.
Depois, como estava num setor em que se lhe não aplicava a Lei dos compromissos e pagamentos em atraso, não tinha que se preocupar em demonstrar que detinha meios financeiros suficientes para os contratos que ia firmando. Os pagamentos seriam geridos criteriosamente, de modo a não criar entropias.
Assim bem assessorado, podia trocar favores com os seus amigos, dando estágio e emprego aos respetivos filhos, esperando, em troca outros favores, caso viesse a ser necessário. As empresas públicas não estão obrigadas a abrir concursos como o Estado. Bastava pôr um anúncio no jornal com um perfil que só pudesse ser preenchido pelo candidato em vista e pronto.
Para além disso, seria um ótimo lugar para ajudar alguns amigos e familiares que tinham empresas e que precisavam de fazer curriculum para se poderem candidatar a concursos públicos. Naturalmente, que já tinha sido avisado que não poderia estar presente nas deliberações do conselho de administração sempre que se decidisse a adjudicação desses contratos, porque havia impedimento e podia ser causa de demissão. Mas isso nem era sequer um obstáculo: o mero conhecimento de que não podia intervir naquele procedimento específico era garantia suficiente de que iria correr bem. Afinal de contas, eram familiares e amigos do administrador…
Também já tinham visto uma forma de contornar a proibição legal de adjudicar diretamente contratos à mesma empresa a partir de 20 ou 75 mil euros se fossem aquisições de bens e serviços e de 30 ou 150 mil euros se fossem empreitadas de obras públicas. Agora, com a Empresa na Hora era tão fácil fazer nascer novas empresas para consultar três ao mesmo tempo e cessar a atividade logo que tivesse esgotado o limite legal de contratar.
O problema é que os contratos tinham que ser obrigatoriamente publicados na plataforma dos contratos públicos. E, como não podia incorrer em responsabilidade financeira por autorizar pagamentos em relação a contratos públicos que não fossem publicados, a empresa cumpria escrupulosamente esta obrigação legal.
Tudo correu lindamente até ao dia em que um jornalista decidiu consultar a lista dos contratos e investigar as ligações de amizade e familiares que o ligava aos adjudicatários.
No início da investigação esquivou-se a responder às perguntas do jornalista e ainda pediu a um amigo comum que o demovesse de aprofundar a questão e de publicar a notícia. Mas correu mal: a notícia saiu, as redes sociais não falam de outra coisa e foi motivo de abertura dos serviços noticiosos nas horas nobres.
Resultado: de repente viu-se a braços com buscas domiciliárias e na empresa com cobertura jornalística em direto e teve que pedir para ser constituído arguido, de modo a poder usar o silêncio como defesa. Agora, resta-lhe articular a defesa com os seus advogados.
A condenação em praça pública já está consumada.
A sua vida está um caos. Ainda ponderou pedir a cessação de funções, mas se o fizesse, que carreira tinha? Desde os seus tempos da pré-primária que se dedicou à liderança: foi chefe de sala e depois chefe de turma no secundário. Tinha-se inscrito na juventude de um partido político e chegou a presidente da associação académica na Universidade. Foi também líder da concelhia e estava a fazer o caminho para conquistar a liderança da federação distrital. O que lhe resta senão confiar nos seus amigos advogados e no gestor de confiança que recrutou? Bem, se tudo correr pelo pior, sempre lhe restará a carreia de consultor de empresas: afinal de contas, para que servem os amigos?