Ana Clara Borrego, Visão online

Para que durante o período de diminuição de receita tributária não exista um estrangulamento financeiro das contas do Estado (receitas versus despesas), exige-se, por um lado, o levantamento exaustivo prévio dos impactos imediatos na descida da receita tributária obtida, por outro lado, que se planeie a forma de compensar, ou por via de novas receitas, ou por corte na despesa publica, o impacto inicial de descida da receita cobrada.

Não poderia deixar de dedicar esta crónica aos «choques fiscais» anunciados, nos últimos dias, por algumas forças partidárias no contexto das próximas eleições legislativas. Os leitores que me perdoem, mas para que este tema possa ser devidamente compreendido, é necessário, antes de mais, enquadrá-lo numa perspetiva teórica.

Os impostos são a compensação cobrada aos cidadão pela possibilidade de viverem numa sociedade organizada, todavia, como em qualquer outra “transação” comercial, é problemático que o “adquirente” percecione o preço cobrado como excessivamente elevado e desproporcional comparativamente com aquilo que “recebe” em troca, bem como as situações em que o “preço” se encontra acima da capacidade contributiva do cidadão, por outras palavras, quando a carga fiscal é excessiva.

Note-se que é, amplamente reconhecido, desde a década de 70 do século XX, o efeito pernicioso que a excessiva carga fiscal tem sobre a receita tributária arrecadada, pois, como referi numa crónica prévia sobre este assunto: “quanto maior o tributo mais compensador é o risco de evasão e fraude fiscais (“o crime compensa”), asfixia os operadores económicos existentes, aumentando a sua taxa de mortalidade, desincentiva o surgimento de novos negócios e desvia para a clandestinidade muitos outros, contribuindo drasticamente para a economia paralela, quando se trata de aumentos nos impostos sobre o consumo, aquele tem tendência a diminuir”, acresce que cargas fiscais muito elevadas, também, incentivam a deslocalização, para outros países, de empresas de maior dimensão, bem como de profissões de elevado valor acrescentado.

Aquelas constatações aumentaram os defensores de um princípio já defendido por Adam Smith, em 1776, no seu livro «A Riqueza das Nações», onde aquele economista, considerado o pai da Economia Moderna, defendeu que a receita tributária seria maior se os governos aplicassem taxas de imposto mais moderadas - aquele princípio, atualmente mais conhecido Base Broadening and Rate Reduction (BBRR), significa arrecadação de receita com base no «aumento da base tributável e redução de taxa», baseando-se nas seguintes premissas: a diminuição das taxas de imposto aumenta a base tributável, por um lado, de forma direta, pois desincentiva a «fuga ao fisco» e a economia paralela, acresce que, potencialmente, trava a deslocalização para outros países de grandes empresas e de profissões de elevado valor acrescentado; por outro lado, de forma indireta, pois estimula o crescimento económico, o investimento e a criação de emprego – os defensores desta teoria advogam que o resultado final é um aumento da receita tributária arrecadada, pois a taxa reduzida atrai para a base tributável muitos valores que de outra forma escapariam à tributação.

Os «choques fiscais» enquadram-se nos pressupostos das Base Broadening and Rate Reduction e nas últimas décadas várias têm sido as experiencias de «choques fiscais», nomeadamente no Reino Unido, em 1984, nos Estados Unidos, em 1986, e, mais recentemente, na Irlanda, na Eslováquia e na Estónia.

Conscientes de que Portugal, nos últimos anos, terá atingido uma carga fiscal muitíssimo pesada e da necessidade de recuar nesta matéria, possivelmente inspirados no sucesso recente de alguns países onde ocorreram experiencias deste tipo, de onde se destaca a Estónia, nos últimos dias, algumas forças partidárias têm apresentado, já no contexto de programas eleitorais para as próximas eleições legislativas, propostas de «choques fiscais», mais ou menos arrojados.

Note-se que, sem me referir a nenhuma proposta em particular e, não obstante, ser defensora do Base Broadening and Rate Reduction, pois sustento que se todos pagássemos a tributação poderia ser mas leve percapita, não posso deixar de partilhar convosco a minha preocupação com os efeitos perversos que um «choque fiscal» pode ter, caso não seja muito bem preparado e não venha a fazer parte de uma estratégia mais ampla.

Primeiro, é importante ter noção que a relação entre a diminuição das taxas de imposto e o aumento de receita fiscal obtida (devido ao aumento das bases de tributação), embora espectável, não é garantida, pois o comportamento dos contribuintes no contexto fiscal está dependente de muitas condicionantes e a variável cultural tem um peso muito significativo. Acresce que, aquele efeito de aumento da receita cobrada, caso venha a existir, seguramente, não é imediato, é espectável que numa primeira fase a receita tributária diminua, por diminuição da taxa de imposto e que, mais tarde, venha a aumentar, progressivamente, por ter conseguido atrair para a tributação os que se encontravam fora dela, quer por mecanismos de «fuga ao fisco», quer por estarem a ser tributados em outros países, bem como pelos efeitos positivos do crescimento económico; assim, para que durante o período de diminuição de receita tributária não exista um estrangulamento financeiro das contas do Estado (receitas versus despesas), exige-se, por um lado, o levantamento exaustivo prévio dos seus impactos imediatos na descida da receita tributária obtida, por outro lado, que se planeie a forma de compensar o impacto inicial de descida da receita cobrada, ou por via de novas receitas, ou por corte na despesa pública.