Pedro Moura, Jornal i
O melhor esquema de fraude é aquele em que tudo é feito às claras (…) à confortável sombra da opacidade do ‘legalês’ e da burocracia, mas à vista de todos.
A linguagem é uma arma.E como qualquer arma, tanto pode ser usada para o bem como para o mal.
A linguagem é um instrumento não só de transparência, mas também de ocultação. Permite trazer a luz do conhecimento ao desconhecido e criar uma sociedade, pessoas mais esclarecidas. É talvez a base principal da civilização.
Mas é também uma ferramenta brutal para a criação de labirintos pantanosos de ambiguidades e ambivalências, ocultações ‘acidentais’, caminhos sem saída e barreiras à compreensão e entrada de ‘estranhos’.
É mais que sabido que há certas classes ou grupos que falam linguagens próprias e herméticas que impedem o acesso de pessoas ou grupos que não dominem essas linguagens (sou engenheiro informático, sei bem do que falo).
Com efeito a existência de uma ‘língua própria’ é um dos principais fundamentos para a criação de grupos.
Por exemplo, fala-se sempre muito da linguagem dos adolescentes, incompreensível para as gerações mais tardias, que assim não podem aceder a esse mundo muito exclusivo. E essa ‘dor de corno’ dos mais velhos leva-os a classificar a linguagem de grupo hostil (os adolescentes’) como ‘horrível’, ‘primitiva’ ou ‘abrutalhada’. É natural que os adolescentes, na sua inocência e procura de uma identidade própria desenvolvam uma linguagem própria. Estranho seria se tal não acontecesse.
Todavia, preocupam-me bem mais linguagens que, pela sua opacidade e inacessibilidade, são propiciadoras de fenómenos nocivos que vivem melhor nas sombras que à luz do dia, como a fraude e a corrupção.
Há um problema enorme de excessiva falta de clareza no ‘legalês’ que popula o nosso edifico legal e administrativo. Sobretudo promovida e mantida por advogados, como forma de proteção da sua própria profissão, não se conseguiram ainda levar a cabo projetos como a ‘tradução’ das leis de ‘legalês’ para uma linguagem que o cidadão comum compreenda. Isto é extremamente impeditivo de uma maior qualidade da nossa democracia.
Do espírito do ‘legalês’ é ainda irmão o espírito da excessiva burocratização, que leva a que raramente alguém seja responsável pelo que quer que seja, residindo a responsabilidade antes na ‘organização’, no ‘sistema’, nas ‘regras’ ou mesmo nas ‘leis’. Um falso formalismo (porque não baseado num princípio de utilidade) é a marca da incompetência, negligência e muitas vezes de ‘rabos presos’ em fenómenos de corrupção ou redes de tráfico formal ou informal de influências.
Todo a cultura do Estado está imbuída de um excesso de formalismo que leva a uma maior atenção ao formato do que é escrito e feito que ao respetivo conteúdo ou espírito. Ou seja, o importante é que tudo o que se faça seja ‘à defesa’, para evitar responsabilização através da ambiguidade permanente. Aí se instalam e vivem os espertalhões que sabem ‘fazê-la’.
Veja-se o caso dos empréstimos da Caixa a Joe Berardo. É um jogo interessante de ambiguidades, falsas verdades, e um conjunto de pessoas que parece que nunca estiveram envolvidas em nada do que se passou, quanto mais serem responsáveis pelo que quer que seja. Acho adoravelmente ofensiva (para os contribuintes) o debate aceso sobre se ‘apresentar’ uma proposta é ‘defendê-la’ ou não. Semântica ou tentativa de distorção da realidade?
Como qualquer pessoa minimamente conhecedora de fenómenos de fraude e corrupção saberá, o melhor esquema de fraude é aquele em que tudo é feito às claras. Ou melhor, em que tudo é feito à confortável sombra da opacidade do ‘legalês’ e da burocracia, mas à vista de todos.
No fim de tudo, na eventualidade se algo vier a lume, os ‘envolvidos’ nalgum esquema de corrupção podem sempre armar-se em virgens ofendidas, encolher os ombros e mostrar um belíssimo esgar de indignação. Até porque, provavelmente, nada acontecerá. Tudo ficará confortavelmente diluído no pântano do ‘legalês’ e ineficácia judicial.