António João Maia, Jornal i

A vida social é, em cada momento, em cada contexto e para cada sujeito, uma resultante que traduz um equilíbrio precário (…) que admite a possibilidade da presença da fraude e da corrupção

Semanalmente, o Observatório de Economia e Gestão de Fraude traz a este espaço uma reflexão que procura contribuir para suscitar e aprofundar o conhecimento e a consciência social sobre um fenómeno tão atual nos nossos dias como é o da fraude e o da corrupção.

As abordagens que aqui têm sido feitas baseiam-se muito nos diversos casos de suspeição que têm vindo a público – e são muitos –, e têm possibilitado a exploração dos mais variados ângulos de análise da problemática, desde as causas até às consequências, passando também naturalmente pelos fatores de contexto que caraterizam o fenómeno.

Esta evolução de um crescendo no número de casos de suspeição que têm vindo a público, particularmente nos anos mais recentes, a par de uma correlativa maior intensidade do debate e reflexão pública em redor do tema, pode suscitar uma certa perceção social de estarmos perante um aumento efetivo do fenómeno da fraude e da corrupção em Portugal, à semelhança do que acontece um pouco por todo o mundo.

Não dispomos de elementos que permitam esclarecer esta questão, nem esta reflexão tem verdadeiramente esse propósito. De todo o modo, são conhecidos dois fatores que importa referir quando estamos a falar da dimensão de fraude e corrupção.

Um deles prende-se com a natureza do próprio fenómeno e diz-nos que os casos que são processados pelos sistemas reativos e de justiça – os casos que são objeto de suspeição e, alguns dos quais, de mediatização – são apenas uma pequena parte do número efetivo de ocorrências verificadas (afinal de contas os autores destes atos procuram, de forma natural e racional, ocultar as suas opções e as suas práticas, de modo a permanecerem na posição confortável da impunidade, e muitos conseguem-no). Afinal de contas, não podemos esquecer nem negligenciar que este é um fenómeno que sempre se caraterizou por uma dimensão expressiva de “cifras negras”.

O outro fator, talvez mais característico dos nossos dias, prende-se com maiores índices de transparência e de escrutínio sobre a vida pública e o funcionamento das organizações, sejam elas públicas ou privadas. Este fator tem-se traduzido num aumento da frequência e da intensidade mediática das situações suspeitas que vão sendo sinalizadas. E creio que este seja um dos principais elementos que sustentam essa presumida perceção social do aumento dos índices de fraude e de corrupção nas sociedades.

Mas o ponto de vista que verdadeiramente se pretende abordar nesta reflexão passa muito pela seguinte questão: Será possível que exista uma sociedade sem fraude e sem corrupção? Uma espécie de sociedade perfeita (próxima da que foi proposta por Thomas More, no Séc. XVI, em “Utopia” - 1516), na qual a totalidade dos indivíduos fosse capaz de encontrar uma espécie de equilíbrio harmonioso e perfeito entre as suas ações e as expectativas do que acreditariam ser uma vida social sã, concordante com os mais elevados valores da ética e da moral?

Por certo que não, que esta é em si mesma uma ideia utópica.

No caso de Portugal, questionar-se-ia a possibilidade de harmonizar, a uma espécie de denominador comum, as vontades e os interesses próprios e naturais de cada um dos dez milhões de cidadãos. É uma realidade naturalmente impossível de alcançar.

A vida social é a todo o tempo um compromisso entre vontades e interesses próprios dos indivíduos, confrontados com os contextos em que se encontrem, com as limitações dos valores, das regras e das expectativas do que deve ser, ou do que acreditam que seja, a vida coletiva em que se inserem e da qual fazem parte. Neste quadro há sempre a possibilidade natural de, em cada circunstância, existirem entendimentos, necessidades e até pressões distintas, que variam de sujeito para sujeito e de circunstância para circunstância.

A vida social é, em cada momento, em cada contexto e para cada sujeito, uma resultante que traduz um equilíbrio precário entre os diversos interesses em jogo. Admitir a possibilidade da presença da fraude e mesmo da corrupção nestas circunstâncias, que são afinal as circunstâncias próprias da vida coletiva, parece ser algo perfeitamente natural e normal.

E ver a realidade por este prisma não significa que nada possa ser feito para melhorar a vida coletiva. Como se a fraude e corrupção fossem uma espécie de fatalidade que as sociedades e os indivíduos estão condenados a suportar.

Pelo contrário, esta visão significará a capacidade de desenvolvermos uma consciência mais próxima da realidade do fenómeno para, a partir desse ponto, procurarmos todos os esforços no sentido de, em cada circunstância, contribuirmos para melhorar a qualidade da nossa vida e do nosso bem-estar individual e coletivo, e que todos desempenham um papel igualmente determinante nesse sentido.