Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)

A transparência da actividade económica mais não é do que uma concepção ideológica de maior validação do neofideísmo nos mercados e da prossecução dum maior risco de fraude

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1. O nosso hábito quando falamos de Ciência é recordarmo-nos das várias disciplinas que existem nessa área do conhecimento crítico, diferenciando-se umas das outras pelos seus objectos de estudo e pelas metodologias adoptadas para a sua elaboração (todos sabemos das diferenças entre a Física e a Antropologia, por exemplo, mais que que não seja porque conduziram a diferentes contextos institucionais ꟷ opções de percurso escolar, instituições de ensino superior, locais de investigação de actividade profissional, etc.) mas frequentemente é esquecido que dentro de cada uma delas há diferentes formas de pensar, seja porque estamos perante problemas novos que carecem de explicação, seja porque há distintas formas de observar, pensar e agir face ao mesmo problema. Não é «cada cabeça sua sentença» porque a ciência exige determinada metodologia e duas pessoas seguindo o mesmo percurso de análise têm de chegar à mesma conclusão, há coerência lógica, há realidade e preocupação da sua interpretação objectiva, há modelos, teorias e as suas correspondentes preocupações de fundação, com tudo isto, de explicações coerentes. Contudo, pela consideração de qual é o objecto de estudo, a metodologia, as hipóteses de trabalho (além de outros factores) em cada ciência há diversas leituras tendencialmente objectivas do que se estuda, há diferentes paradigmas.

O que se passa na ciência que estuda a actividade económica? Como afirmamos em síntese em Racionalidade, Ética e Economia (p. 162):

  1. Na língua portuguesa “economia” é um termo polissémico e, se usado sem precisão, é ambíguo. A sua utilização exige o esclarecimento sobre se estamos a referirmo-nos à ciência que estuda uma determinada realidade (“Economia”) ou ao objecto científico dessa ciência, a uma certa leitura da sociedade, isto é, de certos aspectos da realidade, da vivência social (“economia”).
  2. A Economia estuda uma parte da sociedade, observando esta através de um “filtro conceptual” e uma metodologia. Essa leitura parcial assumida como objecto de análise constitui o seu objecto científico. Centrado neste, reconhecendo uma sua mudança, distinguimos vários paradigmas da Economia.
  3. Numa análise global, reconhece-se que a Economia é uma ciência (social). Contudo devemos estar atentos para que as “ideias feitas”, as hipóteses inaplicáveis e uma indefinição associada ao cæteris paribus [“mantendo-se tudo o resto constante”] não violem a abertura à novidade, a possibilidade da falseabilidade e a repetibilidade do caminho percorrido.
  4. Falar em Economia é uma simplificação perante a coexistência de diversos paradigmas alternativos, que fazem leituras bastante diferentes entre si. Temos que saber em cada momento quando falamos em Economia a que paradigma nos referimos, em que paradigma nos situamos.
  5. De entre vários critérios de classificação da Economia em paradigmas assumimos como central a que se centra no conteúdo do objecto científico (O1: produção, repartição e troca; O2: gestão da escassez; O3: escolha racional [gestão óptima dos recursos escassos]).

2. A «escolha racional» é o paradigma actualmente dominante socialmente apesar dos seguintes aspectos:

  1. Assimetria da informação entre intervenientes na economia aumentar com as desigualdades de poder económico, financeiro, social e político e estas tenderem a aumentar mundial e nacionalmente e ser essa a tendência lógica do actual paradigma.
  2. Outras ciências, nomeadamente a Psicologia, as Neurociências e diversos cruzamentos interdisciplinares, mostrarem inequivocamente a inevitabilidade da escolha limitada, o que conduz à tendência da ciência «Economia» transforar-se num conhecimento do «dever ser», numa negação epistemológica.
  3. A vivência em sociedade exigir inevitavelmente regras de relacionamento entre os seus elementos (o que alguns autores chamam uma «racionalidade axiológica») em que se inclui a ética, aspecto totalmente ignorado pelo presente paradigma marcado pelo individualismo.

Neste contexto a racionalidade instrumental é imperativa e a «eficiência» dos resultados é o elemento condutor fundamental ou exclusivo da actuação dos «agentes económicos». Todos estes aspectos facilitam duas tendências fundamentais:

  • A entrada dos economistas numa cultura diferencial (para utilizar a linguagem de Sutherland) de cometimento de fraude. Uma das possíveis justificações para o aumento destas no período de domínio deste paradigma.
  • A opção por uma fé inabalável no funcionamento eficiente dos mercados económicos, a eles se devendo subordinar toda a vivência social.

3. A transparência da actividade económica ꟷ associada à crença da possibilidade da vontade individual superar as leis objectivas do modo de produção capitalista em que vivemos ꟷ mais não é do que uma concepção ideológica de maior validação do neofideísmo nos mercados e da prossecução dum maior risco de fraude.

Significa isto que a luta pela transparência é inevitavelmente uma negação do que ela aparenta ser?

Não, se aplicada à actividade política e administrativa, desde que respeitando determinados princípios, como retomaremos na próxima crónica.