Óscar Afonso, Público online,

As práticas de gestão meritocráticas são fundamentais para o desenvolvimento económico em qualquer país, mas, em Portugal, chocam claramente com traços atávicos de mentalidade.

O termo Meritocracia terá sido usado pela pela primeira vez em 1958, no livro The Rise of Meritocracy, de Michael Young, onde se atribuía uma importância excessiva aos testes e métodos quantitativos, como prática habitual para medir o talento e escolher líderes, sendo visto como um desvio tecnocrático e, portanto, assumindo um sentido pejorativo.

O conceito evoluiu e assumiu valores modernos, com a obra The Managerial Revolution: What is Happening in the World, publicada em 1941, pelo filósofo e político americano James Burnham, que acreditava que futuramente a sociedade seria liderada por técnicos e especialistas, em detrimento dos políticos ou membros instalados e auto-denominados donos do sistema. Os proprietários das empresas tenderiam a afastar-se da sua gestão, cedendo os cargos de liderança a pessoal formado e altamente competente, e no Estado aconteceria o mesmo, com os governos a serem constituídos por pessoas com a formação adequada e, portanto, capazes de eficazmente desempenhar o cargo. Esses quadros especializados seriam a nova classe dirigente no mundo desenvolvido, demasiado complexo para ser gerido por elementos provenientes de elites privilegidas com competência duvidosa, geralmente mesquinhas e manipuladoras.

No entanto, verificamos que, em alguns países, a conduta e comportamentos assentes no mérito são muito raramente postos em prática, nomeadamente no seio do Estado, atribuindo-se razões históricas e de índole cultural para o facto de, tanto em Portugal como noutros países da sul da europa, haver proeminentes métodos clientelares e “amiguistas”, que asseguram a distribuição da riqueza “para cima” (à elite) e que, naturalmente, se opõe a verdadeiras práticas meritocráticas, como as que se observam em países nórdicos. Aqui, nestes países, de resto em linha com o seu nível de desenvolvimento, existem condutas e atitudes empresariais que promovem os indivíduos em função dos seus méritos, sejam eles a aptidão, as competências ou a inteligência, e não em função da sua origem social ou de relações individuais, como são os casos de nepotismo, tão em voga na recente remodelação governativa, que claramente favoreceu parentes e amigos próximos em detrimento de outras pessoas qualificadas.

O “despedimento” da meritíssima ex-Procuradora Geral da República e a referida remodelação, ambos os casos amplamente divulgada através dos meios de comunicação social, não obstante colocarem em causa os princípios de Ética Republicana, vêm corroborar o que se passa em Portugal no que respeita à meritocracia. Assim, pertinente e muito atual continua a ser a discussão em torno do tema associado ao conceito de Meritocracia versus “Cunha”, representativa do amiguismo, do Job for the boys, do clientelismo e de outros sinónimos, todos eles indicativos do quanto é, ou pode ser, fácil para determinadas “elites” obter empregos (e promoções) ambicionados pela maioria da população. Essas “elites”, desenvolvidas no interior de lobbies partidários ou de outros grupos de interesse organizados, entendem que deve ser assim por questões meramente consuetudinárias e, como tal, é um direito que lhes assiste, desconhecendo-se qual a racionalidade e lógica implícita. Não são certamente os portugueses mais notáveis, pois não se lhes reconhece nenhum ilustre conhecimento académico ou outro, mas são detentores do que verdadeiramente interessa para, em Portugal, aceder a certo tipo de lugares – a “Cunha”.

Por analogia, poderemos equiparar tal discussão à lei da oferta e da procura, em que, face a necessidades ilimitadas (comparáveis aqui à procura dos melhores empregos) e a recursos escassos (equiparados aqui à raridade da oferta de empregos), o preço (representativo aqui do mérito) deveria apresentar-se como o elemento diferenciador ou medidor que permitiria a desejada afetação. Acontece que em Portugal está institucionalizado que não é o preço (leia-se mérito) que determina a afetação de empregos e as promoções, mas sim a “Cunha”, vulgarmente conhecida por fator “C”. Enquanto for assim, haverá naturalmente apenas um protótipo de democracia pois a “Cunha”, os salários chorudos que todos pagamos, e o ludríbio de eleitores com promessas falsas de uma vida futura melhor direcionam/condicionam o voto.

Neste contexto, a população portuguesa em geral muito dificilmente ascenderá até à prosperidade média da União Europeia. De facto, dificilmente se consegue um emprego, a sua manutenção ou promoção por mérito próprio, sendo, no entanto, tal situação facilitada quando se tem amigos ou familiares bem posicionados ou se pertence a um grupo privilegiado.

Como se verificou, a crise provocou desemprego, congelou carreiras, e fez com que jovens formados e altamente qualificados, não tendo oportunidades em Portugal. Foram (e continuam a ser) obrigados a emigrar. Rumam, racionalmente, para países cujas sociedades são mais meritocráticas. Efetivamente, com a multiplicação sem precedentes de licenciaturas e mestrados, a frustração é enorme quando se constata que a meritocracia como método de seleção de recursos humanos é quase inexistente.

É avassalador verificar como os mesmos nomes de família aparecem repetidamente nos cargos públicos, nas administrações e na liderança de grandes empresas – do qual o exemplo paradigmático é a atual composição do governo. Aliás, é do conhecimento público a existência de colaboradores que quase não contribuem em termos de trabalho – muitos seriam mais rentáveis fora do sistema – e, no entanto, são muito bem pagos. Poder-se-á falar de uma forma de remuneração feita à medida dos poderes familiares ou políticos vigentes, havendo necessariamente uma delapidação injusta dos rendimentos que penaliza o resto da sociedade.

As práticas de gestão meritocráticas são fundamentais para o desenvolvimento económico em qualquer país, mas, em Portugal, chocam claramente com traços atávicos de mentalidade. Existem estruturas mentais retrógradas muito enraizadas que lideram organizações públicas e empresas âncora cruciais na promoção do crescimento económico. O poder político não atende aos interesses de todos e descaradamente são praticados atos abusivos que antes eram criticados em anteriores detentores do poder. O compadrio, a criação de intermediários improdutivos e de parasitas originados pelos partidos políticos é, de facto, a regra, desprezando-se a meritocracia em favor de interesses da elite. Assiste-se a um desenrolar de enredos mesquinhos do amiguismo e compadrios, e até a manipulações e vinganças que, numa altura de plena globalização, compromete a tão necessária Compliance com as boas práticas e, por arrastamento, o desenvolvimento económico. Neste contexto, a corrupção acaba por ser generalizada, tendo aumentado com a (suposta) democracia.