Jorge Fonseca de Almeida, Jornal de Negócios

O racismo institucional é o que faz a mais eficiente e rica máquina camarária do país, montada por Isaltino de Morais o empreendedor eficiente, engasgar, emperrar, bloquear e não conseguir resolver um pequeno problema como o de arranjar um abrigo quente e confortável para a Dona Anália Gomes.

Dona Anália Gomes é uma senhora cuja exígua reforma não lhe permitiu manter a sua casa em Algés (concelho de Oeiras) e foi posta na rua por um senhorio ganancioso protegido e legitimado por uma Lei democrata-cristã que leva nome de uma antiga ministra.

Dona Anália Gomes está a beira dos 80 anos e vive agora ao frio e à chuva numa paragem de autocarro. Para preparar as suas refeições faz uma pequena fogueira com que aquece os ingredientes que consegue juntar. O seu olhar parece por um momento acalentar uma esperança para no momento seguinte reganhar o frio de quem já nada espera da vida. É que são muitas as portas que se lhe fecharam.

Dona Anália Gomes é muito faladora e articulada, mas a idade já pesa e por vezes a sua mente vagueia entre a realidade e o imaginário. Conta-nos a história de um filho emigrante em França que minutos depois se encontra em Cabo-Verde sua terra natal. Verdadeiramente não tem ninguém.

Em outubro passado fui a uma reunião pública da Camara de Oeiras, agora e sempre dirigida por Isaltino Morais, levantar o problema desta idosa sem-abrigo. Na altura alertei que o inverno se aproximava e a débil saúde da Dona Anália Gomes podia não aguentar as intempéries. Como a Dona Anália Gomes é negra referi que o seu caso, há mais de dois anos na rua sem que ninguém interviesse, me parecia advir de um racismo institucional que não vê urgência em acudir a certas pessoas.

O vice-presidente ofendido respondeu que não, que racismo ali não havia, e a Vereadora da ação social logo reforçou que o caso da Dona Anália estava sinalizado e seria resolvido, comprometendo-se a autarquia a pagar-lhe um quarto. O vice-presidente regressou à carga garantindo que confiasse que todo o possível estava a ser feito. E para afastar qualquer suspeita de racismo exibiu a sua ancestralidade angolana. O cérebro prega-nos muitas partidas e ao ouvi-lo, e completamente a despropósito, vinham constantes imagem do mordomo desempenhado por Samuel L. Jackson num filme em que um caçadores de prémios quer libertar a sua amada escravizada por um fazendeiro branco no Sul dos Estados Unidos. Agradeci a atenção e saí convencido que a situação seria tratada e a Dona Anália Gomes realojada.

Isaltino Morais pode ser acusado de muitos defeitos, e por alguns a justiça o condenou, mas de falta de persistência, energia e eficiência não. Por isso também acreditei que o caso estava terminado e resolvido.

Estamos em pleno inverno – o rigor do tempo flagela-nos os ossos, ligamos o aquecedor, sentamo-nos à lareira, vestimos uma camisola mais grossa. O vento sopra, a temperatura desce, a chuva cai, contudo continuamos secos, quentes, protegidos e confortáveis. Mas a Dona Anália Gomes continua na sua paragem de autocarro indefesa e desprotegida, sofrendo. Nada foi feito.

Este é o racismo institucional, o que se esquece das pessoas, o que tem outras prioridades, o que se desculpa com frases feitas, o que põe a culpa na vítima ("Ela é que não quer sair dessa situação"), o que finge não ver cores para melhor espezinhar, o que tem de seguir regras feitas para que nada aconteça, o que deixa a Dona Anália Gomes morrer numa paragem de autocarro.

O racismo institucional é o que faz a mais eficiente e rica máquina camarária do país, montada por Isaltino de Morais o empreendedor eficiente, engasgar, emperrar, bloquear e não conseguir resolver um pequeno problema como o de arranjar um abrigo quente e confortável para a Dona Anália Gomes, octogenária negra, condenada a definhar e morrer numa paragem de autocarro.

Vi-a na quinta-feira passada. Mirrou. Está mais magra. Mais triste. Tem uma mão ferida. Provavelmente não aguenta até ao fim do inverno. Invade-me uma grande tristeza. Por ela, por mim, pelo nosso país.

Economista