Nuno Guita, Jornal i

Não deixa de ser de estranhar que, para além de tímidas abordagens nas escolas de direito, continue a escassear em Portugal, uma abordagem científica mais ampla do Compliance

Recordava-me no recente congresso da World Compliance Association em Barcelona, que a infelicidade da tradução do termo Compliance escondia muito da sua natureza. Assim, Compliance não é um processo, não é uma actividade, nem sequer é um conjunto de boas práticas.

Compliance é, pois, um estado de resultado!

Há já vinte anos, desde que as US Federal Sentencing Guidelines trouxeram ao mundo o maior contributo sobre as expectativas concretas de resultado de Compliance nas organizações e seus órgãos de administração. Para além disto, muito tem sido a prática a ditar impulsionando decisivamente o tema.

Mas não deixa de ser de estranhar que, para além de tímidas abordagens nas escolas de direito, continue a escassear em Portugal, uma abordagem científica mais ampla do Compliance, pois a ausência é total.

Podemos atribuir este facto à circunstância de o primado do direito e o princípio da legalidade serem entendidos como autoevidentes e o consequente cumprimento das normas (ou Compliance) não carecer de fundamentação. Então será que a esse respeito já ficou tudo dito? Não, de forma alguma! Como de resto a prática do dia-a-dia nos vem revelando.

É, pois, sobretudo a natureza transversal da matéria, que constitui o desafio do Compliance organizacional, que não se pode reduzir a uma variedade de áreas jurídicas ou regulatórias. Assim, importaria verdadeiramente inovar todo um conceito regulatório, que muitos, há muito tempo, vêm reconhecendo como necessário. A isto acresce ainda desafios das situações transfronteiriças, com abordagens regulatórias por vezes conflituantes e que parecem inultrapassáveis. É nessa altura que os “práticos” se encontram desprovidos do necessário estudo académico com propostas, abordagens e soluções sustentadas.

Apenas para concretizar, recordemos os requisitos de fulldisclosure do FCPA quando em confronto com a protecção que é dada ao delator em sede de procedimento concorrencial na CE. Ou a protecção que algumas jurisdições conferem ao denunciante, quando noutras a testemunha tem o dever de depoimento, ou mesmo a polémica das buscas aos advogados da Jones Day, no Dieselgate, na Alemanha. Tudo isto sugere uma certa complexidade para além do que muitos desejariam.

Seria então necessário reflectir de novo, por exemplo, sobre os fundamentos económico-legais para os incentivos ao cumprimento com base na sanção ou na investigação interna de violações de Compliance por parte das organizações (o chamado policiamento corporativo). O mesmo se aplica ao propósito sancionatório dos entes colectivos como definido no direito penal português. Talvez isso até explique porque as empresas portuguesas continuam sem perceber o risco sancionatório como suficiente para corrigir as condutas.

Também a relativa ausência de responsabilidade pessoal, quer dos administradores Executivos, quer dos não-Executivos, em matéria de non-Compliance organizacional, dificilmente permitem soluções diferentes das que actualmente vigoram. E enquanto se mantiver o mero simbolismo das multas às empresas dificilmente o Compliance na empresa será levada a sério. Isto porque devemos perceber que contrariamente aos indivíduos, que desenvolvem condutas (censuráveis ou não), as empresas organizam factores de produção. Sendo pouco útil discutir a ética empresarial sem esta evidência, o que não promove boas práticas empresariais.

Mas se quisermos alcançar soluções de Compliance sustentáveis, incluindo uma discriminação positiva para cumpridores, então devemos debater-nos com três questões:

1. Uma discussão profunda sobre as causas de incumprimento normativo no seio das empresas;
2. Desenvolvimento de conceitos e soluções diferenciadores que, a longo prazo sejam credíveis e convincentes;
3. A consistência normativa e legal que permita a qualquer empresa saber quando é responsável, como, e por quais regras (eventualmente violadas). Muitos dos casos de incumprimento resultam efectivamente de exigências difusas e incompreensíveis sobretudo quando estabelecem responsabilidades terceiras (por exemplo na prevenção ao branqueamento de capitais ou controlo das exportações).

Mas estes objetivos só podem ser alcançados através de uma forte ligação e grande proximidade entre ciência e prática.

Como se percebe, tanto nos casos passados como nos presentes e diferentemente do que algumas pessoas desejam, não é assim tão fácil "endireitar" tudo o que está “torto”. Mas como todos sabemos que o próximo escândalo está já à espreita, é urgente e indispensável arregaçar as mangas, antes que nos volte a “cair o céu”.