António João Maia, Jornal i

A fraude e a corrupção são soluções alternativas para alcançar o dinheiro necessário para concretizar sonhos que de outro modo não passariam disso mesmo.

O estilo de vida das sociedades atuais – autodenominadas sociedades modernas – trouxe-nos e mantém-nos convictamente cientes (e sobretudo profundamente dependentes) da existência de um novo Deus.

Trata-se de um Deus com características distintas dos outros, daqueles dos Templos e dos Rituais Litúrgicos. Mas, à sua maneira, tem igualmente os seus rituais e os seus mistérios. Tem uma enorme capacidade para conferir um certo sentido às nossas vidas, que assim vão ficando cada vez mais enleadas e dependentes dele.

Refiro-me, claro, ao dinheiro e a tudo o que ele representa em termos de poder e de simbolismo para cada sujeito e para a sociedade no seu todo.

Por si só e em termos puramente materiais, o dinheiro pouco ou nada é. De facto e bem vistas as coisas, são pequenos pedaços de metal com impressões em baixo-relevo e tiras de papel pintado que circulam de mão em mão. Pedaços de metal e tiras de papel materialmente iguais a tantos outros com que nos cruzamos em espaços menos dignos e limpos e aos quais não damos qualquer valor por se tratar verdadeiramente de lixo.

Mas o dinheiro, bem o dinheiro é diferente. O dinheiro é mesmo muito diferente…

Por uma espécie de arte mágica ou de transe coletiva em que todos estamos mergulhados, independentemente de termos mais ou menos consciência disso (a maioria das pessoas não tem esta consciência), acreditamos, sustentamos e validamos que cada um desses pedaços de metal e tiras de papel tem um determinado valor associado.

E o transe vai de tal modo longe, que o dinheiro se tornou numa espécie de oxigénio que sustenta a vida social. Com dinheiro, e só com ele, tudo se pode comprar. Tudo!

Numa visão rude, mas porventura realista, quase podemos afirmar que quem tem dinheiro vive e quem não o tem não vive ou vive mal.

É com dinheiro que compramos os bens alimentares com que sustentamos a nossa sobrevivência. É com dinheiro que compramos os bens materiais que nos conferem todo o tipo de confortos. É com dinheiro que conseguimos concretizar os nossos sonhos, como seja fazer uma viagem à volta do mundo, comprar um automóvel desportivo topo de gama ou uma mansão junto ao mar.

Quem tem dinheiro e em função do montante / valor de que disponha, reúne condições para concretizar projetos de diversa ordem. Enfim reúne condições para viver dentro dos parâmetros que esta sociedade reconhece como os adequados. E quem não tem dinheiro fica irremediavelmente afastado desta possibilidade. Fica nas franjas da sociedade, Fica numa certa marginalidade.

E entre estes limites encontramos toda uma seriação de possibilidades, entre os abastados e os mais ou menos remediados.

Neste enquadramento suscita-se a questão relativa ao modo de acesso a esse valor tão importante.

O trabalho, no caso dos assalariados, e os investimentos, no caso dos investidores, são provavelmente as duas grandes formas socialmente legitimadas para aceder ao dinheiro. E é em função das receitas que cada sujeito tenha que vai naturalmente encontrar o nível de concretização e as opções associadas aos seus projetos de vida.

Provavelmente neste ponto o leitor já se terá questionado, “sim, é verdade que a realidade pode ser lida assim de modo simplista, mas qual a relação de tudo isto com a fraude e a corrupção?”.

De facto a fraude e a corrupção encontram também neste contexto uma grande parte ou mesmo toda a explicação para a sua ocorrência.

Se a vida, e sobretudo a qualidade de vida, se faz muito por associação ao dinheiro que se tem ou que não se tem, e se os meios socialmente legitimados para aceder ao dinheiro são em si mesmos limitadores da quantidade / valor de dinheiro de que se pode dispor, não será descabido aceitar que a pressão consumista possa, pelo menos junto de indivíduos menos escrupulosos e mais ambiciosos, suscitar a possibilidade de aceder a mais dinheiro por vias ilegítimas, nomeadamente pela fraude e pela corrupção.

Robert Merton, nos anos 30 do século passado (Merton, R. (1938). Social structure and anomie. In American Sociological Review. 3(5): 672-682) estudou esta questão, no modelo teórico da anomia. Verificou que as expectativas e as opções de vida das pessoas em sociedade se fazem em torno de objetivos socialmente reconhecidos e de meios socialmente validados e disponibilizados para os alcançar. Concluiu o autor que aqueles que conseguem alcançar os seus objetivos através dos meios socialmente reconhecidos e validados apresentam um estilo de vida conforme com as expectativas sociais, portanto sem problemas e sem lugar a censuras ou sanções. Outros, pretendendo alcançar os mesmos propósitos, mas não dispondo dos mesmos meios, avançam com outros alternativos, socialmente não legitimados, assumindo soluções inovadoras, como lhes chamou.

A fraude e a corrupção são soluções alternativas para alcançar o dinheiro necessário para concretizar sonhos que de outro modo não passariam disso mesmo.

O contexto da sociedade de consumo, que parece não ter limites na procura de novos e sempre “essenciais” produtos para (alegadamente) melhorar a vida das pessoas, vai alargando as “necessidades” de cada um e aumentando a pressão para a sua concretização.

A probabilidade para a ocorrência de fraude e corrupção é por isso uma realidade, como aliás tem sido sobejamente mostrado pelas inúmeras suspeições todos os dias noticiadas um pouco por todo o lado.