Mário Tavares da Silva, Visão online

“…a ausência de uma proteção efetiva coloca invariavelmente o denunciante num complexo e difícil dilema, pois se é expectável que ele proceda, sem tergiversar, à denúncia, também não é menos verdade que ele sabe, melhor do que qualquer outro cidadão, que ao fazê-lo, se expõe, com alta probabilidade, a uma possível retaliação por parte daqueles que denuncia.”

...

É hoje incontornável e relativamente consensual a importância que os denunciantes (vulgo alertadores) tiveram em casos como o “Luxleaks”, «Panama Papers» ou mesmo o não menos mediático «Cambridge Analytica». Não surpreende pois que seja precisamente neste emergente e crescente ambiente delatório de empresas e pessoas, outrora intocáveis nas suas douradas e imponentes «masmorras» de um silêncio cúmplice e putrefacto, que se inscreve a oportuna proposta avançada, em abril deste ano, pela Comissão Europeia (diretiva COM–2018-218) para a definição de um novo quadro legislativo e regulatório no sensível domínio da proteção de denunciantes.

É, para os mais otimistas, um novo tempo aquele que agora se prefigura, capaz de incentivar ao exercício de uma cidadania mais vigilante e atuante perante a prática de atividades ilícitas mas, sobretudo, menos tolerante para com atos de corrupção, de fraude, malversação ou mesmo de negligência que, como todos sabemos, minam a confiança de todos nas instituições que nos governam, afetando, em última linha, de forma doentia e incontrolavelmente metastizante, os próprios alicerces do Estado de direito democrático em que todos nós, sem exceção, é suposto vivermos.

Mas quem são afinal esses denunciantes? Serão apenas loucos ressabiados contra o sistema que os governa? Ou meros servidores públicos insatisfeitos com lideranças bafientas, persecutórias e incompetentes? Ou ainda, porque não, altos quadros de um importante banco privado que sentindo-se encurralados por uma investigação criminal que aperta, decidem, a coberto do manto do anonimato, apontar o dedo aos demais na esperança de com isso salvarem a sua própria pele? Ou serão tão somente desequilibradas criaturas cuja única profissão que se lhes conhece é queixar-se deste e daquele, mesmo quando nada exista para se queixarem? Ou, ao invés de tudo isto, tratar-se-ão simplesmente de cidadãos que tomando conhecimento de práticas lesivas do interesse público, decidem, no exercício dos seus direitos de cidadania, denunciá-las?

Na aceção proposta pela diretiva, o denunciante constitui-se como a pessoa singular ou coletiva que comunica ou divulga informações pertinentes sobre infrações que tenha obtido, direta ou indiretamente, no exercício da sua atividade profissional. Ele é, ao fim e ao resto, todo aquele que desenvolvendo a sua atividade numa organização ou com esta se relacionando, reúne as melhores condições para ser o primeiro a tomar conhecimento de comportamentos anómalos e irregulares, suscetíveis de lesar o interesse público e que, de outra forma, tenderiam a permanecer ocultos e ignorados pelos demais.

Os denunciantes jogam pois um papel democraticamente decisivo na deteção, investigação e sancionamento de fenómenos de natureza corruptiva ou fraudulenta, incluindo toda uma panóplia de atos ilícitos que afetem a saúde pública, segurança, integridade financeira, direitos humanos, ambiente e a própria legalidade que sustenta e substancia o mais elementar funcionamento de uma democracia.

Ao fazê-lo, os denunciantes contribuem de forma eficaz para salvar inúmeras vidas e biliões de euros de fundos públicos, prevenindo, simultaneamente, a ocorrência de inúmeros escândalos e desastres da mais variada natureza e magnitude.

Este direito que a todos assiste de denunciar, a todo o tempo, comportamentos e atuações que encerrem uma potencial ou efetiva danosidade do bem comum, constitui, sem sombra de dúvida, uma extensão natural e umbilicalmente inseparável do direito de liberdade de expressão, estando também, nessa medida, inextrincavelmente conectado com os importantes princípios da transparência e da integridade no regular funcionamento das instituições no quadro de um Estado de direito democrático.

De tal sorte que se pode afirmar que todos temos o direito de proteger o bem estar dos nossos concidadãos e a sociedade como um todo. Nalguns casos, dir-se-ia mesmo que se pode divisar um dever de denunciar essas mesmas condutas por forma a que sejam imediatamente identificadas, erradicadas e respetivamente sancionados os seus autores.

No entanto, e se assim é, a verdade é que equacionada a denúncia nestes termos, a ausência de uma proteção efetiva coloca invariavelmente o denunciante num complexo e difícil dilema, pois se é expectável que ele proceda, sem tergiversar, à denúncia, também não é menos verdade que ele sabe, melhor do que qualquer outro cidadão, que ao fazê-lo, se expõe, com alta probabilidade, a uma possível retaliação por parte daqueles que denuncia.

Nesta irrespirável atmosfera de sombras, reveste especial relevância o quadro sancionatório que se espera poder vir a ser criado pelos Estados-Membros, capaz de disciplinar, de forma proporcional e adequadamente dissuasora, todos aqueles que impeçam ou tentem impedir a denúncia, tomem medidas de retaliação contra denunciantes, instaurem processos vexatórios contra os mesmos ou, ainda, violem o elementar dever de manutenção da confidencialidade da identidade da pessoa visada.

Finalmente, diria que se pode revelar ainda útil neste domínio, aproximarmo-nos, sem tibiezas, de uma possível descriminalização do ilícito de difamação (de fronteiras ténues com a denúncia) ou, pelo menos, a uma desgraduação da sua atual gravidade, em linha aliás com o que tem vindo a ser defendido pelo Conselho da Europa quanto à necessidade de se ponderar a abolição das penas de prisão por difamação, exceto nos casos de incitamento à violência, discriminação religiosa e discurso do ódio.

Ao arvorar-se a difamação, qual «espada de Dâmocles», como uma forma particularmente eficaz e insidiosa de intimidação sobre o denunciante, estaremos a comprimir e a limitar incompreensivelmente o valor maior dos direitos de liberdade, em particular o direito de liberdade de expressão que a diretiva, sob a capa do instituto da denúncia, pretendeu precisamente assegurar ao denunciante.

Saibamos pois estar à altura do desafio e, sobretudo, sermos suficientemente corajosos para de forma clara, equilibrada e sem diabolizações, cumprirmos o sentido e a letra da diretiva que, como já antes comecei por dizer, não só é oportuna como, acrescento agora para finalizar, apenas peca por tardia.