Jorge Fonseca de Almeida, Jornal de Negócios

Ao analisar a sociedade atual, Mbembe identifica grandes linhas de tendência. Vou aqui destacar duas que estão interligadas: a fronteirização e o Governo pelo abandono.

Esteve esta semana em Lisboa o proeminente intelectual negro dos Camarões Achille Mbembe, investigador do Instituto W. E. B. Du Bois da Universidade de Harvard nos Estados Unidos e professor universitário na África do Sul, para apresentar e discutir as suas ideias.

A conferência principal decorreu na Culturgest, mas Mbembe falou também, em tom mais intimista, na Cova da Moura. Uma atitude que define o Homem.

O evento parece ter passado despercebido ao grande público mas, pelo seu conteúdo, as ideias que nos deixou merecem ser analisadas e amplamente debatidas.

Ao analisar a sociedade atual Mbembe identifica grandes linhas de tendência. Vou aqui destacar duas que estão interligadas: a fronteirização e o Governo pelo abandono.

A fronteirização ("borderisition") é a propensão para o estabelecimento de novas fronteiras que separem as pessoas, dividindo-as entre os desejados por um lado e os indesejados e supérfluos por outro. Desenha-se a tendência para os Estados fortes decidirem quem pode estar onde e quando, coartando o direito básico do ser humano a mover livremente o seu corpo.

A fronteirização reaviva o sonho do apartheid de confinar os indesejáveis, de lhes restringir os movimentos e de os punir severamente sempre que pretendam ultrapassar os limites que lhes são impostos.

A fronteirização manifesta-se externamente aos Estados, com a construção de muros, e outras formas de controlo, que impeçam os estrangeiros indesejados de entrar e permitam aos estrangeiros desejados circular livremente, e internamente restringindo a mobilidade interna de certos grupos raciais ou sociais, o seu confinamento a áreas restritas e o seu policiamento e punição automática sempre que queiram libertar-se desses constrangimentos.

Com as novas tecnologias, as grandes bases de dados pessoais, os satélites, os drones, o acesso à geolocalização de todos através dos telemóveis e tablets, é hoje possível classificar e identificar de forma mais rápida e eficaz do que coser uma estrela amarela nas roupas dos grupos indesejados como faziam os alemães.

Uma vez classificados e identificados, os indivíduos podem ser confinados na sua mobilidade e no acesso que têm aos diferentes bens sociais e abandonados, sem perigo, à sua sorte.

A segunda grande tendência atual é a do Governo pelo abandono. O desmantelamento do Estado social com a renúncia do Estado e de parte da sociedade em sentir-se responsável pelo destino da maioria dos outros e as políticas de emigração restritivas, racistas e xenófobas são exemplos desta forma de governo.

Ambas as tendências se interpenetram e alimentam mutuamente. Sem fronteirização interna e externa não é possível um Governo pelo abandono e o estabelecimento de um Governo pelo abandono necessita para ser exequível de um tipo eficaz de fronteirização. Para que os desvalidos, indesejáveis e supérfluos não se manifestem e se resignem à sua má sorte.

O exemplo extremo que Mbembe deu destas tendências foi a faixa de Gaza, onde vivem quase dois milhões de pessoas, que pode revelar-se, se nada for feito para o contrariar, o futuro de grande parte da Humanidade.

O palestinos de Gaza não podem sair desse território. Um muro alto cerca todas as fronteiras terrestres. Não podem visitar os familiares que moram em Jerusalém ou na Cisjordânia e muito menos os que moram no estrangeiro sem prévia autorização de Israel.

Não podem pescar nas águas da costa de Gaza fortemente patrulhada pela marinha israelita. Tudo o que entra e sai de Gaza tem de ser autorizado por Israel, desde a ajuda humanitária da ONU a uma simples carta. Regularmente as Forças israelitas bombardeiam, matam, ferem palestinos inocentes e desarmados.

A agricultura foi destruída com o arranque das oliveiras e os solos contaminados com bombas de fósforo e de outros químicos. A água do solo está também em grande medida contaminada, mas é a que os palestinos são obrigados a beber.

A indústria não pode funcionar devido aos frequentes bombardeamentos que a destroem e aos constantes cortes de eletricidade.

O bloqueio é férreo, o abandono completo, o confinamento absoluto, a mobilidade dos palestinos nula, o policiamento sofisticado, com drones, vigilância eletrónica, satélites e agentes infiltrados, as punições constantes com bombardeamentos, arranque de árvores, envenenamento das águas e dos solos, disparos indiscriminados sobre homens, mulheres e crianças. Gaza é o Inferno na Terra. Uma prisão, um enorme campo de concentração.

Pode ser este o futuro que nos espera?

Economista