Henrique Santos, Visão online

Entre ir ao Cinema ou assistir a um julgamento, cada vez mais prefiro a segunda opção

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As opções culturais nas regiões do interior de Portugal nem sempre são elevadas, e muitas vezes limitam-se às ofertas dos Auditórios Municipais e aos Tribunais, com prejuízo destes últimos que têm encerrado amiúde.

A vantagem competitiva dos Tribunais face aos Auditórios Municipais está centrada sobretudo no preço (dado que, para quem assiste, são de entrada gratuita). Se não formos fãs de pipocas no cinema, então vale mesmo a pena ir ao tribunal assistir a julgamentos, não porque as peças sejam reais (bem, às vezes são verosímeis), mas porque é mais barato, e temos horários alternativos. Por outro lado, nos julgamentos temos ainda as peças únicas, exclusivas e são experiências irrepetíveis.

Nos tribunais, apesar de, aparentemente, grande parte dos atores parecerem todos iguais por fora (por causa daquelas vestes formais), na verdade há-os bem distintos, figurantes, atores secundários,   adereços,... enfim, neles rodam um conjunto de verdadeiras peças de teatro ou filmes de cinema. Acho mesmo que uma cadeira/disciplina obrigatória dos cursos de teatro, cinema, televisão e afins, devia passar a contemplar a obrigatoriedade de assistir a julgamentos!

Nos julgamentos há glamour, enredo, mistério, atores, comentadores, há de tudo, acreditem...

Mas há mais, nos julgamentos pode encontrar verdadeiros momentos de suspense, animação, presunção, culpados, inocentes, condenados... e tudo ali, ao vivo e a cores, e connosco dentro da cena.

Na verdade, assistir a julgamentos traz uma oferta muito mais diversificada do que ir ao cinema ou ao teatro, por vezes assiste-se também a autênticas peças de circo, isto para não dizer palhaçadas (com esta vou ser chacinado).

Acha possível uma testemunha (ator no nosso caso), ir a julgamento sem sequer ser identificado? Claro que sim. Um advogado dizia-me: “passa lá por a cabeça de alguém ir mentir a tribunal, ainda por cima sob juramento? Se a outra parte desconfiar que aquela pessoa não é quem diz ser, deve desmascará-lo”. Pior, respondi, conheço quem tenha sido erradamente notificado e foi a tribunal testemunhar (pelo menos teve o bom senso de alertar o oficial de justiça para o lapso).

Para vos demonstrar o motivo pelo qual, entre ir ao Cinema ou assistir a um julgamento, cada vez mais prefiro a segunda opção, vou-vos contar parte de uma peça que esteve em exibição há algum tempo num tribunal perto de si.

Rodrigo (nome fictício), foi a tribunal acusado de não pagar uma dívida que titulou com uma letra, isto é, ele passou um "documento" a um credor onde se comprometeu a pagar-lhe uma dívida em determinada data, contra a apresentação daquela letra ao banco. No entanto, a falta de provisão fez com que não fosse possível ao credor receber o dinheiro, mesmo tendo o devedor assinado um documento que demonstrava a dívida e garantia ao credor receber o montante em causa.

Ora, no caso em questão, e visto que o Rodrigo não pagou a dívida, o credor (Miguel, nome também fictício), foi ter pessoalmente com o primeiro para lhe pedir o dinheiro, tendo o Rodrigo dito que não lho pagava.

Face a essa recusa, o Miguel foi a tribunal, para, com aquela letra, demonstrar a dívida e ver se conseguia receber o seu dinheiro.

No julgamento, quando o Juiz perguntou ao Rodrigo (réu) se este devia dinheiro ao Miguel, este respondeu-lhe que não. Face a essa resposta, o Juiz pediu para ser evidenciada ao réu a letra que havia assinado, e voltou a perguntar-lhe se, de facto, não devia nada ao Miguel e se reconhecia aqueles documento e assinatura. Este pegou na letra, olhou cuidadosamente para o documento, e com ar de meio admirado, meio surpreendido continuou a dizer que, de facto, não devia nada ao Miguel e, antes que o Juiz voltasse a abrir a boca, abriu-a o Rodrigo e, frente a todos e para estupefação dos mesmos, comeu a letra num ápice!..., a Prova-Mãe que titulava a dívida!...

Querem melhor enredo que este, em direto, totalmente inesperado? Sim, e num tribunal de província...

Não sei se a história vai continuar, mas creio que a fome não foi o motivo pelo qual o Rodrigo comeu a letra.

Vou ver se apanho o próximo episódio da série, porque essa é a maior dificuldade quando escolhemos os tribunais como local de espetáculos predileto.

Já agora, conhecem alguma peça melhor? Duvido.