Mário Tavares da Silva, Jornal i

O arquiteto da câmara municipal, gente próxima da família e seu antigo colega da tropa, dissera-lhe, com todas as letras, que “…ali nem pensar construir…” pois a “...maldita da linha de água estava ali e não havia como mudá-la…”

Dizia-se na vila que nada podia falhar, pois aquele negócio bem podia ser o negócio de uma vida! Pelo menos, ele assim o vaticinara. Filho único, herdara, subitamente, dos pais, um terreno de áreas generosas, situado bem juntinho ao rio, com árvores frondosas e sombras encharcadas de frescura, daqueles cantinhos idílicos que a todos fazem sonhar. No entanto, quis o destino que nada ali pudesse ser feito. O arquiteto da câmara municipal, gente próxima da família e seu antigo colega da tropa, dissera-lhe, com todas as letras, que “…ali nem pensar construir…” pois a “...maldita da linha de água estava ali e não havia como mudá-la…”. Perante tal infortúnio, ficara desesperado, pois logo agora que tinha umas massas para ali investir, quem sabe, num desses rentáveis negócios da moda, ligados ao ecoturismo ou ao turismo rural, eufemisticamente chamado de turismo sustentável, daqueles em que dóceis cavalinhos se abeiram do rio enquanto as crianças fazem festas nas suas longas crinas e os pais desfrutam das maravilhosas vistas que os amplos e confortáveis bungalows oferecem. Mas como avançar, se aquela maldita linha de água teimava em impedi-lo de concretizar tão benfazejo projeto para a região? Ciente de que o seu sonho disso não poderia passar, ainda assim não se resignou. Tal não estava, definitivamente, no seu ADN. Tinha que fazer acontecer, desse por onde desse. Ligou, então, para um seu amigo Vereador, por sinal com o pelouro do planeamento urbanístico e seu antigo cliente no banco, a quem outrora dera uma “mãozinha” num processo de financiamento para a compra de um apartamento de férias que, ao que se dizia, era utilizado para prazenteiros e prolongados almoços com altas individualidades da terra, entre elas o Provedor da misericórdia local, figura respeitada e influente no meio, ligado que estava às gentes de poder da capital. Queria, ao fim e ao resto, expor-lhe o seu projeto, justificar as razões pelas quais o antecipava como de especial importância para o desenvolvimento da economia local e, a final, ouvir o que ele tinha para lhe dizer. As expetativas, por conseguinte, estavam altas. Afinal, tinha sido ele que no auge da crise imobiliária, lhe desbloqueara o financiamento bancário para a compra da sua casa de férias.  Estava,pois, na altura de retribuir, pensava ele, mas sem ousar verbalizá-lo. O Vereador, percebendo o que pretendia e aquilo de que podia vir a beneficiar, ofereceu-se, dada “…a amizade de muitos anos…”, para “mediar” todo o processo. Ele que esquecesse arquitetos amigos e figuras afins, pois seria ele a acompanhar o mesmo, pessoalmente e até decisão final. Fazia questão que assim fosse, dado que o projeto lhe parecia genuinamente muito interessante. Apenas teria que lhe adiantar algum dinheiro, coisa pouca para começar, pois, explicou-lhe, “…a estrutura de licenciamento é pesada, os pareceres são muitos e de muitos lados e os senhores arquitetos nem sempre percebem o que é importante para a economia local…”. No entanto rematara, tranquilizando-o e dizendo-lhe que ficasse “…descansado pois, às vezes, a linha de água até pode encolher, bastando apenas que as pessoas certas assim o queiram…”. Prometeu-lhe que falaria com o Presidente e que tudo ficaria devidamente acautelado. Os riscos estavam todos controlados. O dinheiro foi então transferido para uma das contas da mulher do Vereador, empresária de sucesso da região na área dos lacticínios, por pagamento de serviços que ela jamais prestara tendo, a final, o empreendimento de sonho sido concretizado a poucos metros da linha de água que, em boa verdade se diga, como que por magia encolhera. Decididamente, tudo não passara de uma falsa questão, pois a verdade é que a coisa certa com as pessoas certas, finalmente fizera avançar os seus intentos. O turismo rural fez-se, a bem da economia local. O Vereador, o Presidente e mais alguns intervenientes no importante processo, receberam um “simpático retorno financeiro” pelo seu esforço e abnegação em prol do desenvolvimento da região e o amigo arquiteto, o tal que inicialmente dissera nada poder ser feito, acabara a fazer o tão almejado projeto no seu atelier privado, mesmo em frente aos Paços do Concelho.

Na inauguração, devidamente publicitada no jornal do município, marcaram presença destacadas figuras do concelho e altas individualidades da capital. Foi, sem dúvida, um dia de festa.

Ao fim e ao resto, e como sorridentemente o Vereador fez questão de dizer ao Provedor “…a linha de água, vista de cima, era apenas e tão só uma questão de perspetiva…”!

Que assim seja, pois nestas coisas de linhas de água, manda quem pode e obedece quem deve ou, como sói dizer-se, é tudo bons amigos!