José António Moreira, Visão online

O que aconteceu é típico da criatividade contabilística: surge quando menos se espera, nunca deixa de surpreender, apresenta soluções “engraçadas” … e, em geral, vem à mistura com explicações do mesmo teor, propostas por responsáveis de ar sério..

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Vivemos tempos em que cada um sofre, de forma mais ou menos intensa, pressão para ser “criativo”, para pensar e atuar “out of the box”, como agora se diz.

Genericamente, o uso da criatividade, o ser-se capaz de fazer algo de forma diferente e mais eficiente, parece ser socialmente positivo. No entanto, quando se desce ao particular, será o uso da criatividade, sempre, um contributo positivo para a sociedade? Talvez não. Mas, assim sendo, não se deveria adjetivar o termo, para se sinalizar o que se está a tratar? Por exemplo, “criatividade desejável” e “criatividade indesejável”.

Há um pequeno inconveniente, claro, o de não ser fácil definir objetivamente, para o geral, onde posicionar a linha de separação entre estas classes. Porém, quando se desce ao nível do concreto, a classificação dos casos pode não ser tão difícil como parece. Constate o leitor, por si próprio.

    1. O Novo Banco apresentou há dias os seus resultados referentes a 2017. Um prejuízo de 1.400 milhões de euros, para o que contribuiu o registo de um montante de imparidades de mais de dois mil milhões.
      Imparidade?! Embora se julgue que o termo, pelo seu uso recorrente nos últimos tempos, já foi incorporado na linguagem do dia-a-dia, usa-se de precaução para com o leitor que tenha andado um pouco mais distraído: trata-se de previsão de perdas futuras em bens e direitos da empresa, que as regras contabilísticas impõem sejam refletidas de imediato, como uma perda, no resultado do período. Sim, leitor, é verdade que se trata de uma previsão feita pela empresa, que vai afetar o resultado desta de modo diferente consoante seja mais agressiva (a empresa regista mais imparidades do que as necessárias) ou mais conservadora (o oposto, registando menos do que as necessárias).
      Claro, tem razão. Existem os auditores que controlam as contas da empresa. Mas, será que eles se atrevem a questionar a decisão da empresa se as imparidades forem registadas de forma agressiva?! Não, não acredite no Presidente do Novo Banco quando ele refere que “… Não houve ‘sobreimparização’ … [pois] o reconhecimento destas perdas foi validado por auditores e órgãos de fiscalização.” Sim, pode dizer que são tretas. Pode até ser coincidência, mas veja o leitor se este registo de imparidades não vem no momento certo: o banco mudou de dono, aproveita-se para “limpar a casa”, utilizando o que a literatura costuma designar como uma estratégia “big bath”; fica tudo muito mais airoso para no futuro mostrar bons resultados e, além disso, e quiçá sobretudo por isso, o sistema financeiro português – a sociedade como um todo, claro – tem de colocar muitas centenas de milhões de euros no Novo Banco, para cobrir parte dessa perda de valor, por via de cláusulas constantes do contrato de venda. Não abane a cabeça com esse ar incrédulo, é verdade!
      Como é possível que a avaliação do banco, que serviu de base à transação do mesmo ocorrida há pouco mais de meio ano, estivesse tão errada que um “buraco” deste tamanho não tivesse sido percecionado pelos novos donos?! Não sei, caro leitor. O que aconteceu é típico da criatividade contabilística: surge quando menos se espera, nunca deixa de surpreender, apresenta soluções “engraçadas” … e, em geral, vem à mistura com explicações do mesmo teor, propostas por responsáveis de ar sério.
    1. As contas individuais anuais de 2017 da Montepio Geral Associação Mutualista (MGAM) haviam sido apresentadas alguns dias antes das acima referidas. Ao leitor não deve ter passado despercebido o destaque que os “media” lhes dedicaram durante breves dias, por efeito da magia contabilística que permitiu, com um registo contabilístico, divulgar quase 600 milhões de lucro, em vez dos 220 milhões de prejuízo que seriam reportados se tal registo não existisse. Pela cara do leitor, este caso o assunto parece ter-lhe passado ao lado. Agora não foram as imparidades a principal ferramenta usada. Foram os “impostos diferidos”, um instrumento contabilístico pensado para refletir no balanço das organizações o impacte futuro de responsabilidades ou direitos relativos a impostos sobre o rendimento (vulgo IRC). Tratando-se de “responsabilidades”, i.e. de pagamentos em futuros períodos relacionados com transações presentes, o registo do imposto diferido é dito “passivo” (IDP) e vai reduzir o resultado do período (tem o mesmo efeito da constituição de imparidades), ou o capital próprio da organização. Em ambos os casos, pesa negativamente nas “contas”. Tratando-se de direitos, imposto diferido “ativo” (IDA), o impacte é o oposto do referido, e pelo efeito desse registo a organização sofre um súbito “lifting” de imagem, ficando de um momento para o outro com um ar (mais) saudável. Sim, leitor, a imagem melhora, mas nada muda na essência económica da organização. Não pense, no entanto, que não há “limites” à utilização dos IDA, no sentido de evitar que se torne mera “ferramenta de natureza estética”. Há. Por exemplo, no caso de prejuízos fiscais passados, que geram IDA, para a organização os poder abater no cálculo da matéria coletável de futuros períodos é necessário provar que aquela vai ter lucros em tais períodos. Sorri?! É verdade, a previsão do futuro é mais moldável aos interesses de quem a faz, do que a plasticina em mãos de criança. Mesmo numa organização que tem um histórico impressionante de prejuízos anuais é possível mostrar que o futuro vai ser risonho e cheio de lucros. Calma, leitor. É a aplicação das regras contabilísticas. Até aqui nada de criatividade, a não ser, eventualmente, na previsão de um futuro risonho. Mas há um truque de magia nesta história, ao nível do melhor de um Luís de Matos. O leitor consegue percebê-lo? Uma pista: como pode uma organização que, pela sua atividade, estaria isenta de IRC, registar impostos diferidos? Pois claro, isso mesmo, pedindo para que tal isenção deixe de lhe ser concedida, o que a Autoridade Tributária aceitou. Tem razão, leitor, a sua cara triste faz sentido: como a contabilidade, e os truques que com ela se fazem, não criam valor, o “buraco” da MGAM continua a existir, apenas está disfarçado, momentaneamente não se vê. Não é isto magia?

Pronto, leitor, agora é a sua vez de adjetivar estes casos …

Vê, até nem foi difícil, pois não?