António Gomes Dias, Visão online
A inércia do Estado no que respeita à fiscalização das contas das IPSS, para além de contemplativa e complacente pode ser entendida como “cumplicidade silenciosa” e comprometer a sustentabilidade financeira e a imagem do Estado e das próprias instituições.
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Nos últimos anos são cada vez mais frequentes os casos de fraude e corrupção que têm vindo a público. Uma rápida leitura aos títulos que facilmente se encontram numa breve pesquisa na internet permite concluir que os casos ocorrem por todo o país, no sector público e privado e também no designado terceiro sector. Como disse um velho amigo, “parecem cogumelos, aparecem um pouco por todo o lado”.
O terceiro setor da economia, onde se enquadram instituições particulares de solidariedade social, associações, clubes, fundações e instituições religiosas merece uma especial reflexão. Trata-se de um setor que se pode considerar como complementar ao sector público e ao setor privado, na medida em que nele se espera encontrar solução quando as outras respostas falham, essencialmente em questões de dimensão social.
Ainda que de forma não muito rigorosa, poderá dizer-se que o caráter social das suas atividades é a razão que justifica a atribuição do estatuto de entidades sem fins lucrativos ao qual se encontra associado um regime fiscal privilegiado.
Mas note-se, que tal não quer dizer que não podem ser lucrativas, antes pelo contrário, espera-se que as suas operações gerem os excedentes necessários à prestação de serviços de qualidade que visem a prossecução dos objetivos sociais que são a razão da sua existência. Os excedentes gerados devem ser devidamente reinvestidos e não existe, ao contrário das organizações empresariais de iniciativa privada, a possibilidade da sua distribuição.
Pela sua importância histórica e social e por registarem um aumento significativo no nosso país, veja-se o caso das IPSS, responsáveis pela exploração de inúmeros infantários, creches, escolas, lares de terceira idade e outras valências que diariamente são frequentadas por milhares de utentes. A amplitude dos serviços prestados por estas instituições implica a necessidade de financiamento por parte do Estado e particulares que se traduz na transferência de recursos financeiros significativos (na ordem de dezenas de milhões de euros por ano).
Num momento em que são cada vez mais as vozes que solicitam às empresas privadas comportamentos éticos e transparência nas suas operações, espera-se que as IPSS, entidades que perseguem o interesse público e que recebem apoios do Estado, pautem a sua atuação pelo cumprimento e respeito das normas a que estão sujeitas de forma a garantir a sua credibilidade pública e a salvaguarda dos direitos dos utentes.
Porém num universo de milhares de IPSS os recursos que o Estado afeta à sua fiscalização são extremamente reduzidos, não sendo de estranhar alguma sensação de impunidade e manchetes, muitas vezes com origem em denúncias e não em ações de controlo preventivo, que referem acusações de gestão fraudulenta, burla qualificada, fraude fiscal, abuso de confiança, apropriação indevida de bens, extorsão, participação económica em negócio, corrupção, peculato, falsificação de documentos, tráfico de influências e branqueamento de capitais.
Não é por se tratar de instituições de utilidade publica que se deixa de verificar a ocorrência de abusos, crimes e escândalos financeiros. Não é por se tratar de instituições com uma forte componente social ou por se afastar o lucro dos seus objetivos que a fraude e corrupção desaparece. Por estes motivos exige-se ao Estado, tal como faz com as empresas privadas, que fiscalize e promova de forma eficaz ações de controlo necessárias à prevenção e deteção antecipada de irregularidades em entidades do terceiro setor.
O Decreto -Lei n.º 36 -A/2011, de 9 de março, aprovou o regime da normalização contabilística para as entidades do setor não lucrativo (ESNL), onde se incluem as instituições particulares de solidariedade social, obrigando-as a certificação legal das contas caso ultrapassem durante dois anos consecutivos, dois dos três limites estabelecidos no artigo 262.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), ou seja, € 1 500 000 de total de balanço, € 3 000 000 de total das vendas líquidas e outros proveitos e número médio de trabalhadores no exercício de 50.
Posteriormente, através do Decreto-Lei n.º 64/2013 de 13 de maio, o Estado “considerando a especificidade da atividade do setor social” conforme consta no preâmbulo do próprio diploma, considera que a aplicação dos limites antes referidos às IPSS “não só se revela desajustado e desproporcionado, como traduz um esforço financeiro acrescido, tendo em conta o controlo público já feito aos orçamentos e contas…”. Assim, as IPSS previstas no diploma apenas ficam sujeitas a certificação legal de contas quando, durante dois anos consecutivos, ultrapassem dois dos três limites estabelecidos no já referido artigo 262.º do CSC “multiplicados por um fator de 1,70”.
Com esta medida o Estado diminuiu significativamente o número de IPSS sujeitas a certificação legal de contas e criou um regime distinto a estas mais favorável, quando comparado com as empresas privadas, uma vez que os limites que impõem a referida certificação são mais elevados, diminuindo consequentemente as garantias de credibilidade e conformidade das demonstrações financeiras destas entidades.
Mas será que faz sentido? Utilizando novamente as expressões retiradas do preâmbulo da norma, isto é, “considerando a especificidade da atividade do setor social”, parece-me que não.
Beneficiando as IPSS de fundos públicos e de reduções significativas nos impostos, sendo geridas essencialmente de forma voluntária e amadora (ainda que por vezes remunerada) e não tendo o Estado meios de fiscalização suficientes, a exigência de certificação legal de contas não é “desajustada nem desproporcionada” e o eventual “esforço financeiro acrescido” é seguramente significativamente inferior aos impactos causados nas contas do Estado por praticas de gestão irregulares.
A exigência de certificação legal de contas, nos mesmos termos que é exigida para as empresas privadas, para além de ser fator de equidade promove a transparência e a credibilidade podendo em simultâneo ser inibidora, pela presença de um profissional devidamente qualificado com funções de fiscalização, de comportamentos abusivos.
Na minha última crónica neste espaço, a propósito da deslocalização dos lucros empresariais para territórios de reduzida tributação, concluo que a “inércia fiscal para além de contemplativa é complacente". Pois bem, termino a presente crónica adaptando a frase.
A inércia do Estado no que respeita à fiscalização das contas das IPSS (ou de forma mais alargada das entidades que operam no setor não lucrativo da economia), para além de contemplativa e complacente pode ser entendida como “cumplicidade silenciosa” e comprometer a sustentabilidade financeira e a imagem do Estado e das próprias instituições.
Não podemos esperar que a “boa vontade” ou o espírito voluntário dos seus gestores e trabalhadores seja suficiente para inibir comportamentos abusivos e a obtenção indevida de benefícios.