Óscar Afonso, Jornal i online
“A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económic“A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica”
Nos nossos dias tudo tende a ser medido em dólares ou euros. Parece que pouco importa a vida das famílias, os valores, as carências alimentares e habitacionais, a pobreza em geral e a exclusão social em particular. Na verdade, o economicismo parece ser o vetor estruturante da presente ideologia. A história do quotidiano é então narrada na perspetiva dos vencedores. Muitas colunas nos média são preenchidas com a interpretação que CEOs executivos, ministros, presidentes, parlamentares, porta-vozes e outros opinadores fazem sobre os grandes negócios. Neste contexto, quando o Papa Francisco fala do amor pelo dinheiro, revela que essa é, por excelência, a forma de existência do capitalismo “selvagem”, que expurga os valores acima referidos. Valores que foram sendo dissolvidos pelo espírito competitivo dos mercados e pela consequente valorização excessiva do dinheiro e do consumismo.
Assim, a fim de assegurar o bem-estar e a felicidade dos homens, a economia deve servir as necessidades humanas. Algo que se foi perdendo porque as pessoas, especialmente as que formulam as políticas, foram considerando que os mercados organizavam eficazmente toda a esfera económica. O Papa Francisco pretende assim contribuir para uma “leitura” mais rigorosa da sociedade. A “leitura” da sociedade tendo em conta também, e sobretudo, quem não acede ao poder político, quem não controla mercados, quem não financia campanhas eleitorais e quem não compra, nem pode comprar, favores.
Nesse sentido, alerta para a necessidade de atender aos marginalizados, para quem viver é sobreviver, e mostrar a parte da realidade que tende a esconder-se à nossa consciência. Mostrar, um pouco da história dos cidadãos vencidos, mas indispensáveis e que, infelizmente, são em grande número. Mostrar que mesmo quando a economia vai bem muitos vão mal.
Como sabemos, a Economia é a ciência social que estuda a forma como as sociedades utilizam recursos escassos para produzir bens e serviços com valor e como os distribuem pelos vários indivíduos. Tendo em conta, por um lado, a escassez de recursos e, assim, de bens e serviços e, por outro lado, as necessidades ilimitadas, há que fazer escolhas, operando com eficiência. Nesse processo, nas economias ocidentais, o mercado resolve as três questões essenciais, através do funcionamento do mecanismo de determinação de preços. O que produzir é determinado pelos ‘votos monetários’ dos consumidores, já que na prossecução do lucro as empresas vão produzir os bens e serviços cuja receita supera os custos. Como produzir é determinado pela concorrência entre os produtores, que, para obterem lucros, recorrem aos métodos de produção mais eficientes. Para quem produzir depende, desde logo, do poder aquisitivo da população.
Usando as palavras do Papa Francisco, para que a Economia seja “a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro”, e porque “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica”, e como para tal a mão invisível do mercado não chega, o Estado deve promover a eficiência, fomentando a concorrência, refreando tentativas de abuso de posição dominante, combatendo as externalidades negativas e fornecendo bens públicos. Além disso, porque mesmo maximizando a eficiência a equidade não fica garantida, o Estado deve redistribuir o rendimento entre grupos particulares, através de impostos, subsídios e transferências.
De acordo com Papa Francisco a dignidade da pessoa humana requer que as desigualdades sociais sejam combatidas (equidade), sendo o maior desafio económico do nosso tempo, não apenas para os pobres, mas para todo o mundo: “A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas [...] para a curar [...]”, porque “[...] enquanto não forem [...] solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.”
Não se trata, pois, de erradicar o capitalismo, ou de rejeitar o dinheiro ou o lucro, trata-se de obter dinheiro e lucro com ética e de rejeitar que a exploração esteja no centro do lucro. Efectivamente, “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica”, mas, em vez disso, assistiu-se à libertação dos mercados das peias reguladoras e disciplinadoras do Estado, e a sociedade humana transformou-se numa “sociedade de mercado”: o mercado que devia existir para ajudar o homem a viver uma vida melhor, passou a ordenar, a dominar, a vida humana.
Rejeita então a ideia de que o crescimento económico, promovido pelo mercado livre, consegue produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Porque a desigualdade crescente só pode decorrer da maior autonomia dos mercados e da especulação financeira, que negam a primazia do homem. Tem, pois, uma visão sombria da sobrevivência global diante do capitalismo sem controle (selvagem), considerando que o ponto de inflexão tem a ver com a relação entre o mercado e a sociedade. Por isso, não apela para uma revisão completa da economia, não fala de revolução, mas denuncia a dominação das regras do mercado sobre os seres humanos.
Usando palavras suas, há que “não [...] confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”, sendo que infelizmente “hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. [...] O ser humano é considerado [...] como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. [...] Uma das causas desta situação está na relação [...] com o dinheiro, porque aceitamos [...] o seu domínio [...]. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano.” A crise financeira é, pois, o produto da desregulação, mas também e, sobretudo, da subtração do homem do centro da actividade económica.
E, num desejável novo contexto, aos governos deve exigir-se uma intervenção conjunta, dado que, com a globalização, os actos económicos se difundem no mundo inteiro. Por isso “[...] nenhum governo pode agir à margem de uma responsabilidade comum”, porque “se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos [...] de um modo mais eficiente de interacção que [...] assegure o bem-estar económico a todos os países [...].”
Acresce que a solução não está na caridade pessoal, porque “o crescimento equitativo [...] requer decisões, programas, mecanismos e processos [...] orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo”, exigindo-se “trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos”. A caridade deve, pois, ser “princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também nas macrorrelações [...].”
E, para terminar, recorde-se que “assim como o mandamento ‘não matar’ assegura o valor da vida humana, também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata”, desejando com isso afirmar “não” ao dinheiro que governa, em vez de servir. Efectivamente, antes de existir o dinheiro, já existia a vida, já existiam necessidades sociais, já existiam seres humanos.