Mário Tavares da Silva, Jornal i online

O ar que impregna o processo legislativo torna-o irrespirável, pontuado que está, aqui e ali, por pressões de vária ordem, exercidas por grupos de interesses portadores de agendas próprias e escritórios de advogados hábeis em percorrer os ardilosos alçapões da lei que apenas eles conhecem

Desiludam-se os mais céticos porque, quer queiramos quer não, “respiramos leis por todos os poros do nosso corpo”. Desde manhã, quando tomamos um café, compramos o jornal ou apenas o bilhete para o metro até à noite em que, regressados a casa, ligamos a box da televisão para assistirmos a mais um episódio da nova temporada da nossa série preferida, tudo é regido pelos ditames da lei, aqui entendida na sua aceção mais ampla como um corpo estruturado de normas jurídicas que ordena e disciplina a vida de todos nós em sociedade e, muito em particular, as relações de uns com os outros.

Sucede, no entanto, que a gestação de uma simples lei se desenvolve, não raras vezes, em ambientes de múltiplos e diferenciados interesses, nem sempre facilmente compatibilizáveis na perspetiva dos vários sujeitos em causa. Tal como a atmosfera tóxica de um qualquer parque subterrâneo, situado algures num dos muitos centros comerciais que pululam pelas nossas cidades, por vezes o ar que impregna o processo legislativo torna-o irrespirável, pontuado que está, aqui e ali, por pressões de vária ordem, exercidas por grupos de interesses portadores de agendas próprias e escritórios de advogados hábeis em percorrer os ardilosos alçapões da lei que apenas eles conhecem, fruto de uma nem sempre saudável paternidade e tudo num quadro de ausência total de uma avaliação rigorosa dos custos e benefícios associados à medida legislativa pretendida adotar.

É, sobretudo, um problema de cultura e de prática legislativas que há muito nos acompanha, pois na dúvida sobre como resolver um concreto problema, tendem os nossos decisores a optar por legislar, ainda que esta opção, em muitos casos, se venha a revelar não ter sido a via mais adequada para o problema em causa. A uma opção errada de legislar, somam-se depois, agudizando-a, problemas de complexidade das próprias normas produzidas, num ambiente de manifesta sobreposição de diplomas legais disciplinadores, em medidas e sob perspetivas diferentes, das mesmas matérias. Estas antinomias legais corroem o espaço de liberdade interpretativa e aplicativa da norma, gerando insegurança e desconfiança na própria comunidade quanto aos valores essenciais de isenção, independência e imparcialidade que devem oxigenar toda a atividade legislativa. Da parte da administração pública, de que se espera previsibilidade na atuação, emergem, neste cenário, múltiplas aplicações disfuncionais e contraditórias da própria lei, enviesando e adulterando o seu sentido, potenciando a dúvida interpretativa e, a final, provocando a eclosão do litígio.

Do lado dos cidadãos, a situação assume também, em muitos casos, foros de preocupação porquanto a densidade, complexidade e opacidade das normas legais que, em muitos domínios da sua vida se lhes aplicam, podem constrangê-los a incorrer num quadro de incumprimento ou mesmo à adoção de comportamentos de risco. Nesta complexa equação devemos, finalmente, colocar os tribunais, aos quais cabem, no final da linha, decidir os litígios que os cidadãos lhes apresentam. Também estes se enleiam, por vezes, nas mesmas debilidades do legislador, da administração e dos próprios cidadãos que com ela se relacionam, tudo fruto de um ambiente legal complexo, intrincado, inexpugnável, apenas descodificável por uma pequena minoria.

É, pois, na procura incessante desse “santo graal” da Lei, a sua impermeabilidade a riscos de fraude, corrupção e infrações conexas que se inscrevem iniciativas meritórias como aquela que é corporizada pela recente recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção, de 4 de maio de 2017 e que, em síntese, pretende revalorizar, numa ótica preventiva, a exigente e nobre atividade legislativa, impelindo-a a ponderar aspetos tão díspares como o da necessidade, simplicidade, imparcialidade, permeabilidade a riscos e, ainda, o da transparência das próprias leis. Ao fim e ao resto, uma receita simples que, estamos certos, permitirá que a própria atividade legislativa possa, também ela, num ambiente de equilibrada resiliência, ser cada vez mais eficaz, eficiente e económica quanto aos objetivos que, tão proeminentemente, prossegue na vida de todos e de cada um de nós.