Fernando Costa Lima, Visão online,
Na última crónica começamos a tratar dos pecados dos reguladores. Tratámos então da Gula: http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/2017-02-09-Os-pecados-dos-reguladores.-1--Gula. Hoje analisamos o segundo pecado.
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Vem esta crónica a propósito da Consulta pública do Banco de Portugal n.º 2/2017 - Regulamentação do dever de avaliação da solvabilidade na concessão de crédito a clientes bancários particulares.
Tal consulta pública decorre da necessidade de o Banco de Portugal regulamentar o dever de avaliação de solvabilidade na concessão de crédito à habitação e de outros créditos garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente e na concessão de crédito aos consumidores. Tal regulamentação decorre de um decreto-lei (2) que, por sua vez, transpõe para o ordenamento jurídico nacional a directiva comunitária (3) que trata do assunto.
Não sendo sobre o dever de avaliação de solvabilidade que pretendo falar, permitam-me, no entanto, uma pequena observação sobre a forma como os reguladores olham e consideram os regulados. Diz o n.º 2 do artigo 16.º do referido decreto-lei que “O mutuante só deve celebrar um contrato de crédito com o consumidor quando o resultado da avaliação de solvabilidade indicar que é provável que as obrigações do contrato de crédito sejam cumpridas, tal como exigido nesse contrato.” Tal redacção decorre, por sua vez, do n.º 5 do artigo 18.º da referida directiva (4). Palavras para quê. Haverá por acaso alguma instituição de crédito que se preze e que conceda crédito quando a avaliação indicar que é improvável que as obrigações do contrato sejam cumpridas?
Mas vamos ao que importa. Do que pretendo falar hoje é o que está previsto no artigo 6.º do referido decreto-lei e que decorre do artigo 9.º e do Anexo III da directiva.
Diz o n.º 1 do artigo 6.º: “Os mutuantes ... devem assegurar que os seus trabalhadores possuem e mantêm actualizado um nível adequado de conhecimentos e competências, no que se refere à elaboração, comercialização e celebração dos contratos de crédito regulados pelo presente decreto-lei, bem como relativamente aos serviços acessórios que possam estar incluídos nesses contratos.”
De seguida o n.º 2 daquele artigo enumera as matérias sobre as quais os trabalhadores dos mutuantes devem possuir conhecimentos e competências adequados, transcritas, aliás, do que enumera o mencionado Anexo III da directiva.
Até aí tudo estaria bem. O legislador define um princípio genérico e fundamental a observar e, a partir daí, a entidade responsável pela supervisão e fiscalização dos mutuantes verifica se tal princípio está ou não a ser cumprido.
Mas não. O legislador decide ir mais longe e diz que há-de ser publicada uma portaria - a ser discutida e aprovada por quatro ministros - e que há-de estabelecer os conteúdos mínimos de formação podendo definir conteúdos específicos, bem como a obrigatoriedade de a formação ser ministrada por entidade certificada pelo Banco de Portugal e demais burocracias associadas.
Pode então perguntar-se qual o sentido e a necessidade de existir o Artigo 73.º (do TÍTULO VI Supervisão comportamental - CAPÍTULO I Regras de conduta) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira quando refere que “As instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência.”
Será que vivemos hoje num mundo em que os reguladores acham que os regulados são uma espécie de seres inferiores que precisam da superior orientação dos reguladores porque não sabem o que andam a fazer?
No que toca à regulação do sector financeiro a resposta a esta pergunta parece ser afirmativa e, infelizmente, os exemplos de que assim é, são inúmeros.