Maria Amélia Monteiro, Visão online,

 

O contabilista lá tratava da faturação de maneira a manter-se na média do setor e a apresentar as declarações de impostos a tempo e horas, de maneira a não terem problemas com o Fisco.

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Sempre que se fala de pequena fraude, não deixo de lembrar-me de uma família que tem vivido, com relativa abundância, à custa de negócios empreendedores.

De origem muito humilde, começaram por abrir, em instalações arrendadas, uma oficina de reparação automóvel, que dava emprego ao casal e a dois empregados.

Claro que qualquer reparação só tinha direito a fatura se fosse para pagar por alguma seguradora. No resto, o argumento dos mais “vinte e tal por cento para o Estado e direito a um desconto de 10%” arrumavam logo a questão da exigência da fatura. O contabilista lá tratava da faturação de maneira a manter-se na média do setor e a apresentar as declarações de impostos a tempo e horas, e a garantir que não havia problemas com o Fisco.

E havia sempre aqueles clientes fiéis que lhe garantiam um rendimento mais ou menos certo e que não queriam ir às oficinas da marca porque eram muito mais caras, até porque os obrigavam sempre a pagar o IVA e não havia desconto. E havia um grupo de clientes especialmente lucrativos: tinham carros muito usados e recusavam ver as peças que tinham sido substituídas. Como não havia fatura, nem se apercebiam que muitas vezes lhe eram cobradas peças que nunca foram substituídas e serviços não prestados.

Com o tempo, passaram a oferecer viatura de serviço aos clientes que foram adquirindo aos clientes por preços simbólicos, depois de estes constatarem que o custo da reparação era superior ao valor do mercado. Claro que os orçamentos eram muito inflacionados e havia sempre a ténue esperança de se fazer um bom negócio.

Mais tarde, passaram a dedicar-se à intermediação na compra e venda de viaturas, mas sempre sem aparecerem formalmente como intermediários, as declarações eram assinadas pelo proprietário vendedor e pelo comprador. A oficina oferecia a legalização na conservatória, claro. Tinha uma cliente que trabalhava na Conservatória que lhes tratava disso.

Como empreendedores que são, descobriram que o negócio de importação de carros usados de boas marcas a partir da Alemanha podiam render um bom dinheiro e nem sequer deixar rasto da intermediação. Os interessados só tinham que pagar as deslocações e o serviço de legalização, mas o negócio já seria feito em seu nome. E o negócio foi rendendo o suficiente para deixarem a casa arrendada e comprarem um bom apartamento e a oficina. Depois veio a moradia com piscina e mais tarde, o apartamento na praia, mas em nome das filhas.

Como a oficina tem muito espaço e se situa numa zona com pouco estacionamento, propôs aos vizinhos a recolha das viaturas, mas por um preço mais baixo do que o do mercado, se não for exigida fatura. À hora em que isso acontece não há grande risco de ser fiscalizado e sempre era um rendimento extra.

O parque automóvel da família também começou a melhorar e as obras de melhoria e alargamento da moradia não cessam. Claro que não há licenças na câmara, senão depois ia aumentar o IMI e podia haver a questão de justificar a origem dos rendimentos. Quanto aos fiscais das obras, está tudo controlado: o chefe é cliente e ele oferece-lhe a revisão do carro e a inspeção anual, pelo que não corria o risco de ser multado.

Com a crise, deixou de haver tanto interesse na importação de carros, mas apareceram as famílias super endividadas e em risco de perderem o pouco que compraram a crédito. Esta foi mais uma janela de oportunidade para um novo negócio que não quiseram perder: montaram um esquema de empréstimo de dinheiro a juros escandalosamente altos. Claro que isto pode exigir uma cobrança musculada, quando o cliente se recusa a pagar. Para isso conta com uns jovens desempregados, que gostam de desportos radicais e artes marciais. O preço: oferta das reparações dos carros e uma percentagem da cobrança. E tudo corre sobre rodas a esta família de empreendedores.