Rute Serra, Jornal i online
O ciberespaço, essa alucinação consensual, como o novelista William Ford Gibson o definiu, constitui hoje o palco privilegiado para a prática de condutas ilícitas e lesivas
Deslocámo-nos quase inteiramente para uma realidade virtual que nos embraça, expurgados da imperfeição. Confortável? Talvez. Aliciante? Provavelmente. Seguro? Não, de todo.
É naquele mundo digital, representação da nossa individualidade suspensa, que nos nossos dias, a criminalidade está mais presente. Sim, faz sentido, se a grande maioria das pessoas se “teletransportou”, também os meliantes perceberam estar por ali a sua oportunidade de negócio.
O ciberespaço, essa alucinação consensual, como o novelista William Ford Gibson o definiu, constitui hoje o palco privilegiado para a prática de condutas ilícitas e lesivas, antes do seu PC, hoje da sua vida, da sua empresa e das instituições. Desatentamente, as PME portuguesas não demonstram preocupação assinalável, com este tipo de criminalidade, não obstante os 2528 inquéritos registados, apenas na comarca de Lisboa, no ano de 2015. Remetendo-nos para a estatística internacional, o cibercrime surge no segundo lugar do Global Economic Crime Survey 2016, da PWC, do ranking relativo à criminalidade económica.
O fraudulento ataque de há dias, perpetrado virtualmente ao TESCO Bank, no qual milhares de contas dos clientes foram saqueadas, num valor estimado próximo dos 3 milhões de euros, é aditável a uma semelhante panóplia criminosa galopante, expondo as vulnerabilidades dos métodos até aqui encontrados para lidar com o problema, pelas autoridades. As características intrínsecas deste tipo de crime – geografia transnacional, a-temporalidade, permanência do facto criminoso, camuflagem de identidade, alta tecnicidade exigida e profusa rentabilidade – facilitam a comissão do crime e dificultam a investigação.
E é quando confrontados com casos como este, que nos damos conta da existência de uma zona disruptiva entre nós e a responsabilidade emergente do nosso próprio projeto reflexivo, no mundo virtual. Os problemas (esses bem reais), surgem.
E que resposta tem o direito penal português, para o acontecimento? Na verdade, a mutabilidade rápida dos bens jurídicos postos em causa, condiciona os mecanismos penais existentes. Os hodiernos contornos polissémicos da palavra “risco”, catapultados pelo progresso tecnológico e científico redefinem a sociedade global. Mediante juízos ex ante de perigosidade, aptos a debelar possíveis lesões a bens jurídicos supra-individuais, exige-se que o direito penal atue de modo preventivo e centrado na “gestão do risco”, sempre balizado pelos princípios de imputação jurídico-penal próprias de um Estado de Direito, por justaposição ao tradicional caráter repressivo deste ramo do direito (como defende o dogmático do direito penal alemão, Claus Roxin).
Imersos nesta vida moderna de aquário (que se espraia em redes sociais, e-mails, cartões de crédito, smartphones, conexões de internet), aperaltados num outfit de anonimato, sucumbe a nossa privacidade – esse aspeto das nossas vidas, hipotecado em nome da existência virtual. Será esse o momento em que mais facilmente nos compenetraremos na necessidade de defesa.