Óscar Afonso, Público online,

A adesão ao euro enfatizou a importância dos orçamentos por passarem a ser o instrumento à disposição dos governos para, por exemplo, enfrentar crises específicas. Nesse sentido, a regra passaria por orçamentos anuais equilibrados ou superavitários, evitando excessos de procura e perdas de competitividade e permitindo atender a anos “maus”. Acontece que, em Portugal, não só não se cumpriu a regra como ainda houve as Parcerias Público Privadas e, assim, se decidiu comprometer a regra no futuro.

A “fraude orçamental” foi sendo acompanhada por outras “fraudes”. À cabeça pelas “fraudes fiscais”, reflectidas no andamento crescente da Economia Paralela. No contexto criado, as taxas de juro foram naturalmente subindo e o investimento caindo. Terminou-se como se sabe: resgatados!

As questões que agora se colocam são as seguintes: o que decorre do orçamento para 2017? A meta proposta para o défice é exequível ou continuará a “fraude orçamental”? E que mais se poderá dizer com segurança? Há pelo menos seis pontos a realçar.

  1. O governo propõe um défice de 1.6% do Produto, num contexto incerto de aumento dos dividendos do Banco de Portugal, de recuperação da garantia do BPP e de uma taxa de crescimento de 1.5%. Tendo em conta que a meta para a taxa de crescimento é bem mais optimista que a proposta por instituições internacionais (o FMI e a OCDE estimam taxas de crescimento de 1.1% e 1.3%, respectivamente) e que a reputação das estimativas governamentais é historicamente má, a dúvida quanto à meta orçamental existe.
  2. Não se entende a norma orçamental de desresponsabilização dos autarcas por má despesa pública. Depois de bem mais de uma década de austeridade que não tem fim, será que se pretende reabrir “a porta” à bandalheira na despesa pública em ano de eleições autárquicas?
  3. É altamente reprovável que o governo tenha pretendido contar a história do orçamento com números irreais ou, mais especificamente, tomando um ponto de partida absolutamente errado: em vez de tomar os valores actuais da previsão da despesa de 2016 usou valores de há onze meses, com as previsões iniciais do orçamento de 2016. Com esta manipulação, conseguiu provar que havia: (i) acréscimo de despesa na Educação, quando há diminuição; (ii) um corte ligeiro na Justiça, que afinal não é assim tão ligeiro; (iii) um acréscimo significativo na Saúde, quando afinal o acréscimo é apenas ligeiro. Curiosamente, já usou como estimativa para o défice orçamental de 2016 o valor estimado com informação recente de 2.4%, em vez dos 2.2% que constavam no orçamento, para aparentar uma melhor performance ao nível do corte para o défice. Ou seja, os dados foram sendo usados conforme a conveniência.
  4. É incompreensível o desinvestimento nos serviços do Estado, afectando a qualidade das instituições e prejudicando o normal funcionamento de, por exemplo, escolas e tribunais. Em 2002, Esty e Porter concluíram, no artigo com o título “National environmental performance measurement and determinants”, que existe uma diminuição das despesas em educação nos países com maior percepção da corrupção; será que essa conclusão vale para o Portugal de 2017? Acresce que a redução do investimento na Educação penaliza a fonte do capital humano, mas infelizmente tal só é visível no longo prazo. E como entender o desinvestimento na Justiça que representa certamente o maior bloqueio institucional à performance da economia portuguesa? Se, em matéria de eficiência da justiça, o relatório recente do “World Economic Forum” coloca Portugal no lugar 126 (entre 138 países), será objectivo caminhar para o último lugar? Há alguma dúvida de que a eficiência da justiça é determinante do nível de investimento porque sem segurança contratual não há economia de mercado que resista?
  5. É enigmática, muito estranha mesmo, a existência de medidas que beneficiam fiscalmente offshores. Assim, não é misterioso que o conhecido imposto Mortágua tenha eliminado o significativo imposto de selo que incidia sobre imóveis detidos por offshores localizados em paraísos fiscais? Que ricos se desejarão favorecer?!
  6. A economia continuará estagnada, a dívida continuará a bater recordes, o investimento interno e externo irão contrair-se ainda mais e a carga fiscal indirecta aumentará (ao que parece, também a carga fiscal total). Fica assim garantido que as “fraudes fiscais” serão potenciadas e que o nível de austeridade se manterá. Neste contexto, pelo menos a componente economia subterrânea da economia paralela proliferará.

A economia paralela é fruto de comportamentos marginais e desviantes e não é acomodada pela contabilidade nacional. A economia subterrânea, motivada por razões fiscais, corresponde à parte da economia que não é contabilizada para evitar o pagamento de impostos e contribuições, sendo, por isso, motivada pela carga fiscal. O Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) tem apresentado uma estimativa dos valores, recorrendo a rigorosos e testados métodos estatísticos e econométricos. Os últimos dados divulgados referem-se ao período 1970-2013 e tenciona divulgar em breve, na próxima quarta-feira, dia 9, os valores para os anos 2014 e 2015. Como ficará claro, a tendência de aumento continua a verificar-se.

Sendo as causas explicativas os impostos, as contribuições para a segurança social, os custos administrativos, a intensidade e complexidade de leis e regulamentos (burocracia), a falta de credibilidade de órgãos de soberania face à conduta de alguns representantes, a ineficiência da administração pública, a falta de transparência no atendimento público, as condições de mercado induzidas pela globalização, o baixo nível de educação, a mão-de-obra composta por imigrantes ilegais e clandestinos, a falta de cultura e participação cívica, razões culturais e ambientais, o progresso tecnológico, o baixo índice de confiança na sociedade, a instabilidade social, a carga de regulação e o desemprego, é expectável que a tendência de aumento não pare.

E olhando para o orçamento de 2017, o que se visualiza quanto à análise de medidas e à quantificação da detecção de fraudes? Numa crónica recente do OBEGEF no jornal i, o associado Filipe Pontes, dizia explicitamente o que se visualiza: “Na Saúde, destaque para a desmaterialização de receitas e conferência de facturas sendo o montante expectável de detecção de fraude e poupança estimada de 10M €, existindo um grupo especializado e dedicado na intensificação da luta contra a fraude. Na Educação o destaque vai para o combate à fraude nas baixas médicas, conduzindo auditorias recorrentes e sistemáticas da taxa de absentismo em toda a rede escolar. Na Segurança Social continuar-se-á a implementação de medidas que promovam a obtenção de ganhos de eficiência e eficácia, designadamente através da implementação da declaração oficiosa de remunerações e da flexibilização dos mecanismos de cobrança. E foi todo este o pouco que se conseguiu obter. Nada parece existir de novo e no que se refere à quantificação da poupança estimada para além da Saúde em mais nenhuma área é apresentada uma meta. Para um orçamento que apresenta uma despesa total prevista de 87168 M € ter apenas um objectivo de detecção de fraude quantificado cerca de 0.01% parece muito pouco....”.

Por sua vez no que diz respeito ao combate à precariedade (trabalho não declarado e abuso de contratos a termo), o orçamento privilegia claramente a componente inspetiva e de fiscalização pela Autoridade para as Condições de Trabalho, o que é manifestamente insuficiente e, portanto, com resultados esperados muito limitados.

Na mesma linha do orçamento vale a pena recordar o efeito nefasto do indulto (perdão ou amnistia) fiscal que o governo decidiu atribuir até final do ano para angariar receita. Considerando-o regime excepcional de regularização tributária, não representa mais do que um eufemismo que, em troca da receita tributária necessária para cumprir objetivos orçamentais, tende a legalizar muita ilegalidade. A aplicação recorrente destas medidas faz perdurar a ideia de que a fraude e evasão fiscais, mais cedo ou mais tarde, conhecerão um ponto de fuga legislativo que permitirá a legitimação da fuga aos impostos. O resultado é a desmotivação do contribuinte cumpridor.

Assim sendo, continuará, por exemplo, a distorção na concorrência entre empresas, a redução das receitas fiscais – logo a degradação das contas públicas e do investimento e, portanto, do crescimento e da redistribuição – e a incerteza na estabilização da economia.

Não há solução à vista!