Pedro Moura, Jornal i online

As outras pessoas são instrumentos de ocasião que ou servem os nossos propósitos imediatos ou podem facilmente ser descartadas, por não partilharem dos ‘nossos’ interesses e perspectivas.

 

Em teoria todos sabemos que um dia vamos desaparecer, acreditemos ou não em ressurreições, reencarnações ou qualquer outro tipo de continuidade. E, também em teoria, a partir deste saber de um nosso final, da monstruosidade horrível que é sabermo-nos finitos, erigimos grande parte do nosso sistema de prioridades e definimos o que é mais e menos importante na e para a nossa vida.

Mas a nossa sociedade é avessa à morte. Ao contrário de outras culturas, em que a morte é assumida como presente, nós, ocidentais, tendemos a varrer todo o pensamento ou presença da morte para debaixo do tapete do conforto existencial instantâneo. Achamos que somos fortes, que queremos viver, que amamos tudo o que a vida dá intensamente. Mas não se pode amar a vida sem se conviver com a morte. Neste aspeto, julgo que somos, enquanto civilização, adolescentes. E como adolescentes, a nossa maturidade para gerirmos a nossa própria vida é bastante questionável.

Vivemos à procura de ser amados, mas nunca sabemos efetivamente amar. Queremos comprar felicidade com dinheiro, status, bens materiais, honrarias, e ao fim e ao cabo parece que nunca se tem o suficiente e que a felicidade se apresenta cada vez mais distante. As outras pessoas são instrumentos de ocasião que ou servem os nossos propósitos imediatos ou podem facilmente ser descartadas, por não partilharem dos ‘nossos’ interesses e perspectivas. Todos queremos sentir muito, mas cada vez mais nos isolamos de tudo e de todos, relegando-nos a um anonimato confortável e ao usufruto de ‘experiências’ desenhadas para nos fazer sentir melhor.

Hoje em dia quando se pensa em ‘estar’ com alguém, a pergunta que surge sempre é 'o que vamos fazer e onde’, para garantir que se ocupa com uma qualquer atividade o desconforto de simplesmente se ‘estar’, existindo com o outro. Coleccionam-se pessoas e experiências numa qualquer caderneta de concretizações, mas nunca somos realmente nós, antes uma qualquer personagem que acha saber precisamente o que é expectável fazer e sentir.

E temos egos do tamanho do universo, somos tudo o que existe, nunca há problemas, desejos ou capacidades maiores que os nossos. Somos extremamente soberbos, inconsequentes e seguros porque vivemos num enorme caldo de inseguranças e solidão. Dá impressão que nunca estivemos tão juntos e tão fortes, e no entanto, embora em meio à enorme multidão, nunca estivemos tão sozinhos, nunca vivemos com tanto medo de tudo. Sobretudo medo de se perder o que se ‘é' ou que se ‘tem’.

Temos, enquanto civilização, a enorme força da individualidade, esse brutal impulso criador que exponencia a nossa capacidade de domar o planeta e os outros à nossa vontade. Mas dia após dia há a impressão que o chão se pode abrir e engolir todas as maravilhas que somos e possuímos, tal a fragilidade da nossa realidade. Quanto mais se tem menos se é. Este medo, este terror é o preço a pagar pela artificialidade que criamos para não termos de encarar o que realmente somos: seres frágeis, com um enorme potencial para o bem e para o mal, que no fundo somente querem ser amados.

Esta ‘cultura obsessiva de vida’, sem atenção à nossa verdadeira natureza e limitações, leva-nos ao auto-engano. Queremos avidamente o que realmente não precisamos; ligamos (muito) mais a pessoas que não nos dizem nada que àqueles que realmente merecem a nossa atenção e amor; colocamo-nos em situações e profissões que desprezamos somente porque o contexto social indica que é por ali que se vai ter mais sucesso e reconhecimento exterior; confundimos o que é acessório com o que é essencial e o que é urgente com o que é importante; orientamos a nossa conduta segundo uma ética totalmente imposta de fora sem nunca reflectirmos se concordamos ou não com ela; procuramos saber quem somos pelo que os outros possam pensar de nós e não pela nossa própria auto-consciência; escondemo-nos de nós próprios sob as máscaras do socialmente expectável, do politicamente correto, da fama e da posse, e, por vezes, quando nos olhamos ao espelho (ou passamos 5 minutos realmente sozinhos) assustamo-nos com esse desconhecido que se nos apresenta, humano, sozinho, aberto, frágil. E, de quando em vez ficamos surpreendidos porque sentimos que os outros, muitas vezes próximos, deixaram de nos reconhecer.

Há poucas semanas morreu-me um familiar próximo, alguém que tive na minha vida desde que nasci. Foi um processo inesperado, rápido e tragicamente cruel. Uma vida terminada em meio a um mar de dor, pesar, lembranças, lágrimas, comoção, frustração e desespero. Demasiadas emoções, mas no final de tudo, um corpo enterrado, uma vida com um ponto final. E, em mim, uma enorme sensação de impotência, vazio e pequenez. A lembrança de toda a vida de uma pessoa, de todas as muitas ocasiões, vitórias, derrotas, desejos, possessões, tristezas, alegrias. E o enorme pavor de me saber também destinado àquele fim. O olhar para aquele caixão que ajudava a fazer descer para a terra e saber que é o meu próprio caixão, o de todas as pessoas. Aquela pessoa, aquela situação, aquela dor, aquele desespero de uma raiva tão funda e antiga como a vida, sou eu, somos todos.

E fiz, uma vez mais, a promessa de rever as minhas prioridades, de dar mais importância ao que é realmente importante, de ligar mais a quem mais importa, de amar sem esperar recompensa, de não me transformar em posse e consumo, de viver bondoso e verdadeiro, de não ceder a vaidades e a medos, de viver todos os dias com a consciência clara do meu fim, e de em todos os momentos procurar a vida, a paz, a justiça e o amor.

Quem quiser ser o homem mais rico (ou mais bem sucedido) do cemitério virá provavelmente a ser também o mais sozinho e miserável, bem como aquele que maior fraude cometeu sobre si próprio.