José António C. Moreira, Visão online,
“No próximo ano serão outros a cobrar os impostos. O problema será deles … nada a ver connosco.”
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Foi visitar a National Gallery, em Londres. Passou parte do tempo, sentado, em frente a uma das obras em exposição. Olhou, tornou a olhar. O colorido, as expressões, a figuração, os quase quinhentos anos desde que foi pintada, continuam a exercer sobre ele o fascínio que justifica tão grande interesse.
Na primeira vez que a viu, há muitos anos, a primeira ideia que lhe veio à mente foi a de que o personagem da direita, com o rosto exprimindo sofrimento, era um contribuinte, prestando contas ao cobrador de impostos figurado na parte esquerda da pintura.
Rapidamente essa ideia se desvaneceu. Afinal, eram dois cobradores de impostos. Que dão o título à obra (1). Talvez fossem mesmo uma brigada de cobranças, trabalhando em conjunto.
Porém, continua a ser para ele um mistério o porquê daquela expressão facial do personagem da direita, e da rigidez da sua mão esquerda, por contraponto com o ar sereno do mais velho.
De olhos colocados na pintura, sozinho no meio de uma autêntica multidão em constante movimento pela sala, imaginou uma conversa entre os dois personagens, procurando dar sentido à atitude de cada um deles.
“Ó chefe”, diz o mais novo com voz denotando extrema preocupação, “arrecadamos menos impostos do que no período anterior.”
“E daí?”
“Estamos metidos em sarilhos. Desta não escapamos.”, e a sua face expressava o pânico que o possuía. “Como vamos justificar ao Chanceler que apesar da duplicação das taxas de imposto a arrecadação foi inferior?”
“Segundo os meus registos”, e lia no livro à sua frente, “houve menos transações de peixe, de vinho e de cerveja, logo menos imposto.”
“Sim … e como é que isso ajuda? Como vai ele compreender que não foi desleixo nosso? Como?”
“Tem calma, homem. Vamos ter de lhe explicar que devido ao aumento dos impostos os comerciantes alteraram os seus comportamentos, os consumidores também. Por exemplo, os pescadores passaram a desembarcar o peixe em Amesterdão, e lá se foram os impostos. A cerveja e o vinho tornaram-se tão caros que os nossos concidadãos passaram a beber menos, o que até nem é mau para a saúde, mas é para a cobrança dos impostos. O …”
“Ele não vai querer saber disso. Vai mandar-nos cortar a cabeça … ai vai, vai …”
“Acalma-te! Deixa-te de choraminguices! Daqui a cerca de cinco séculos vai aparecer um fulano, um tal de Laffer, que explicará este fenómeno direitinho. Vai desenhar uma curva hiperbólica – tipo sino, estás a ver? –, que tomará o seu nome, em que mostrará que quando os governantes aumentam os impostos para além de um certo nível, a receita arrecadada diminui em vez de aumentar. Foi o que agora aconteceu. Percebes?”
“Eu percebo … julgo que percebo. Mas o Chanceler não vai querer perceber … e lá se vai o nosso pescoço …”, disse no meio de soluços que lhe embargavam a voz. Todo ele era tensão.
“É bem possível … Espera, talvez tenhamos uma solução …”
“Como, vá, diga lá! Que podemos fazer?”
“Deixa-me pensar … voltamos a visitar os contribuintes … e, a troco de um desconto, solicitamos que nos paguem parte dos impostos do próximo período ...”
“Boa … mas e no próximo ano? Ainda vai ser pior …”
“No próximo ano serão outros a cobrar os impostos. O problema será deles … nada a ver connosco.”
“Hum … brilhante, chefe.”, disse com um timbre de voz totalmente diferente. “Feche o livro, vamos à taberna beber uma cerveja. Eu pago.”
Não estava satisfeito com a história imaginada. Estava muito colada à realidade atual.
Tirou uma foto ao quadro e, com um último olhar, virou-lhe as costas. Até uma próxima visita.
NOTAS
(1) A obra reproduzida pertence à “The National Gallery”, Londres, sendo de autoria do estúdio de Marinus van Reymerswade, e foi pintada cerca de 1540. Para contextualização da obra, e.g. “The ‘Two Tax-Gatherers’ by Marinus van Reymerswale: Original and Replica”, de Ackroyd et al. (2003), National Gallery Technical Bulletin, vol. 24.