Carlos Pimenta, Le Monde Diplomatique,

 

 Publicado no jornal de Maio 2016 (Nº 115).

 

“Agora sabemos que é tão perigoso ser governado pelo dinheiro organizado como pelas máfias organizadas" (Franklin Roosevelt, 1936)

“O capitalismo encontra a sua essência no crime organizado. Mais exactamente, o crime organizado constitui a fase paroxística do desenvolvimento do modo de produção e da ideologia capitalista” (Jean Ziegler, 1998)

Uma realidade

O impacto social da recente divulgação pública dos «papéis do Panamá» não é um acidente de percurso. Os offshores são um dos flagelos da humanidade, paraíso de muito poucos, inferno para 99% da população mundial. O Consórcio de Jornalistas considera uma prioridade denunciá-los. Cabe a todos nós indignarmo-nos pela sua existência, lutarmos pelo fim dessa ignomínia.

As notícias reflectem uma realidade com décadas de existência, agravada dramaticamente com a ruptura social iniciada nos anos 80, assente em três acontecimentos iniciais: a generalização da microinformática; a difusão da política neoliberal simbolizada por Reagan-Thatcher e o desmoronamento dos países socialistas europeus. Só a nossa dificuldade em ler o essencial da realidade, em romper o supérfluo do quotidiano, justifica o nosso espanto.

Concentremos a nossa atenção na natureza dos offshores e nos nomes envolvidos.

 

ADN dos offshores

Offshore aplica-se a realidades com designações diversas (zona franca, centro de negócios internacional, etc.), mas com um conjunto de características comuns:

  • Aplicam impostos baixos ou nulos para não residentes, promovem a concorrência fiscal entre países, isto é, fazem com que os povos paguem os impostos dos ricos. São paraísos fiscais.
  • Revelam extrema facilidade de constituição de sociedades, rápida movimentação de capitais sem qualquer supervisão. Ausência de regulação e de fiscalização das actividades. Com gabinetes jurídicos, de auditoria e de gestão para ajudar a contornar eventuais «indiscrições». São paraísos judiciários.
  • Aplicam forte segredo bancário e profissional, ocultam-se os verdadeiros proprietários e inventam-se outros, criam-se redes de empresas de fachada para encobrirem os circuitos da riqueza. Permite-se que honestos, defraudadores, corruptos e criminosos usufruam do silêncio e da opacidade do que aí acontece, obstaculizando a investigação criminal das fraudes económico-financeiras, nomeadamente as fiscais. São jurisdições de sigilo.

Por vezes nessas regiões há alguma legislação reguladora, que não é aplicada, assim como a aparência de cooperação internacional (por exemplo, em Abril de 2012 Portugal e o Panamá celebraram uma convenção para, entre outras coisas, prevenir a evasão fiscal).

A estes aspectos se junta a presença de instituições financeiras de todo o mundo, a estabilidade política e a boa imagem de marca, como convém a uma realidade ética e socialmente obscena que é legal.

Apesar da competitividade fiscal que existe entre eles, os diversos offshores formam uma rede internacional coesa. Há câmaras de compensação internacionais sem rasto dos valores movimentados, há regiões especializadas em dispersar o capital e as empresas fantasma ao menor indício de investigação policial, uma vulgar transacção é sempre desdobrada em múltiplas operações, tantas mais quanto os nomes e os valores o justifiquem. Ensinam-no logo aos funcionários que aí operam: “Primeiro cria-se um fundo offshore em Jersey, que poucos conhecem; esse fundo será proprietário de uma empresa offshore registada nas Ilhas Virgens Britânicas que, por sua vez será proprietária de outra empresa offshore noutro local como Luxemburgo; é esta empresa que irá abrir e controlar a conta bancária na Suíça". Regiões «cooperantes», «potencialmente cooperantes» e opacas articulam entre si as operações que garantam o sigilo.

 

Sua importância

A sua importância económica, social e política é manifesta.

A riqueza privada nos paraísos fiscais oscila entre 21 e 32 biliões de dólares, metade do produto mundial.

Os paraísos fiscais são omnipresentes. Mais de metade do registo contabilístico do comércio internacional e dos activos bancários, 85% das operações bancárias internacionais e mais de um terço dos investimentos directos das multinacionais no estrangeiro passam por eles. Principalmente para encobrir factos, pagar menos impostos e fazer lavagem de dinheiro.

Via paraísos fiscais, a evasão fiscal anual em impostos sobre o capital é de 28,5 milhares de milhões, sendo de 2,3 biliões a fuga aos impostos sobre o rendimento. Os montantes da fraude fiscal ultrapassam largamente os das outras actividades criminosas: 60%, contra 5% da corrupção e 35% do crime organizado.

Alguns importantes paraísos fiscais: Suíça, EUA, Ilhas Caimão, Luxemburgo e Reino Unido, com Londres, gerindo múltiplos territórios.

Luxemburgo é, desde os primórdios da actual União Europeia, um paraíso fiscal. É a principal câmara de compensação na Europa e mais de metade das transacções financeiras internacionais passam por lá. A revelação de vários acordos com empresas estrangeiras para não pagarem impostos chocou os ingénuos. Jean-Claude Juncker, que o governou, é o Presidente da Comissão Europeia. Esse país foi retirado da lista dos offshores da administração tributária portuguesa.

A instituição encarregue de «regular» os paraísos fiscais é a OCDE, cujos países constitutivos são os seus principais proprietários. Fá-lo em detrimento da ONU e do Comité de Peritos para a Cooperação Internacional em Assuntos Fiscais das Nações Unidas.

Os paraísos fiscais integram activamente a dramática realidade actual:

  • 1% da população tem mais riqueza que os 99% restantes.
  • As classes média e desfavorecida pagam os impostos de que os ricos ficam isentos.
  • A importância da apropriação de rendimento e riqueza aumenta em relação à criação de novo valor acrescentado.

 

As elites da fraude

Alguns nomes foram revelados, outros virão a sê-lo mas certamente é apenas uma parte dos envolvidos, pois para os encobrir existe o entrelaçado de empresas fantasma e de falsos proprietários e operadores. Contudo os montantes envolvidos e os nomes divulgados confirmam o que hoje é uma certeza:

  • A fraude económico-financeira é socialmente mais desestruturante que o tradicional crime de rua. Tem consequências mais nefastamente duradoiras para a humanidade.
  • Os seus operadores utilizam intensamente a circulação de capitais sem restrições, e os offshores são espaços vitais para as suas operações ilegítimas.
  • Tendo como referência os montantes defraudados, os prevaricadores provêm essencialmente das elites sociais, de grupos com poder económico e político, com conhecimentos técnico-financeiros, com uma cultura propensa gerada pela sua função social. Predomina uma criminalidade de colarinho branco.
  • Há um entrelaçamento frequente entre estas elites vândalas e as organizações criminosas transnacionais.

Esta realidade actual exige superarmos os nossos estereótipos sobre o crime e a criminalidade

 

O movimento dos capitais

A lavagem do dinheiro sujo e de outros activos ensanguentados (terminando com a integração nas actividades legais) tem epicentro nos offshores. Aquela assume hoje muitos biliões de euros circulando no mundo empresarial, nomeadamente financeiro. Oficialmente relacionada ao terrorismo, associada a vários tráficos (droga, armamento, órgãos e seres humanos, etc.), à corrupção, à fraude fiscal e ao crime organizado transnacional termina o circuito com a participação em empresas legais e seu controlo.

"As grandes empresas não toleram pagar impostos.” É «fácil» conseguirem-no. A manipulação dos preços de venda e de transferência, a criação de sociedades gestoras de participações sociais e umas tantas empresas de fachada com testas de ferro são suficientes para atingirem os seus objectivos.

Quem, por exemplo, tem dinheiro para colocar na Suíça, não terá dificuldades. Bancos lhe dirão por que fronteiras passar, ou quem contratarem para fazer o transporte. Por vezes recorre-se a esquemas mais complexos envolvendo múltiplos territórios. Se houver dificuldades, alguns advogados informarão como contornar a lei. Para isso os paraísos fiscais são legais e muitas das operações socialmente desviantes aí cometidas escondem-se no formalismo da lei. Basta ter dinheiro, «sentido do negócio», pouca ética e ausência de responsabilidade social para cometer fraude e proceder ao branqueamento de capitais.

Porque os negócios socialmente repudiados geram frequentemente branqueamento do capital, a detecção deste é uma via eficaz de combater a corrupção, o crime e o terrorismo. Permite impedir a apropriação criminosa das actividades económicas legais e a captura dos Estados.

 

Sobrevoo por Portugal

A Zona Franca da Madeira é o paraisinho português: mil empresas em 100 m2 vazios, com um lote reduzido de "gestores" e testas de ferro. Contabilisticamente a Madeira exporta imensas mercadorias que nunca produziu. É "especializado em planeamento fiscal e na manipulação dos preços de transferência, usado pelas multinacionais para reduzir a carga tributária".

Para além dos impostos que não pagam, os benefícios fiscais usufruídos de 2010 a 2014 por aí se localizarem ultrapassou 1500 milhões de euros. A «Troika» exigiu o fim desses benefícios (representaram 73% dos benefícios fiscais em 2010 e 1% em 2011), mas desde então há uma tendência para o aumento da sua importância relativa (20% em 2014). Com o beneplácito da União Europeia, tão pronta a exigir o aumento dos impostos directos dos rendimentos de quem trabalha por conta de outrem e indirectos pagos por todos nós.

Simultaneamente as grandes empresas portuguesas cotadas na bolsa (base do PSI20) deslocalizaram as suas sedes oficiais para o estrangeiro, para usufruírem vantagens fiscais. Por exemplo, a EDP, que sobrecarrega as famílias portuguesas com o preço da electricidade e atribui remunerações obscenas aos seus gestores, instalou a sua holding na Holanda, com o exclusivo objectivo de fugir aos impostos em Portugal.

Os paraísos fiscais estiveram presentes nos casos BCP, BPP, BPN, BES e BANIF e certamente continuam presentes na actual fragilidade do sistema bancário.

 

Portugal e ENR

O OBEGEF calcula anualmente o Índice da Economia Não-Registada, isto é, a importância da fracção da economia existente, mas ausente do produto interno nacional.

A economia não-registada engloba três rubricas diferentes: a economia subterrânea, a economia ilegal e a economia informal. A primeira engloba as actividades dissimuladas para fugir aos impostos e correlacionados. A segunda inclui as actividades ilegais existentes, que não se revelam (ex: droga). A terceira engloba pequenos negócios de sobrevivência, fragilmente inseridos na economia de mercado (ex: “biscato”). Nesta se pode incluir também o autoconsumo. Pelo método cálculo utilizado e as estatísticas publicadas o Índice calculado engloba eficientemente a economia subterrânea e a economia informal e insuficientemente a economia ilegal.

Tem apresentado uma tendência sistemática ao aumento. Em 2015 representa 26,7% do PIB oficial, isto é 45 mil milhões de euros. Se essas actividades fossem fiscalmente taxadas a 20%, não teríamos problemas orçamentais, mesmo aceitando as regras da União Europeia.

Como se explica esta tendência de aumento e o seu valor se, simultaneamente se tem apertado o controlo a muitas actividades e o sistema informático da AT se moderniza e fiscaliza? A resposta ressalta claramente das revelações sobre os offshores. É-se eficaz a controlar os pequenos negócios, mas lascivo para com multinacionais e grandes fortunas e defraudadoras. A canalização da fiscalização para as microempresas e economia informal enfraquece-a em sectores vitais. O aumento de impostos tem efeitos de contratendência. Os sucessivos “perdões fiscais”, os montantes envolvidos e a descriminalização que representam confirmam estas justificações.

 

Agir

É prioritário e urgente que se crie uma opinião pública vigilante, se promova duradoiramente a nossa indignação, vontade e acção. É imperioso que as informações sucessivamente descobertas pelo Consórcio de Jornalistas, exigidas pela opinião pública, vençam as pressões para a não divulgação de nomes e acontecimentos.

Sabemos que o fenómeno não é novo, tem o suporte económico e político de muitos poderes instituídos, que exige uma luta globalizada, mas é possível proibir, ilegalizar os offshores. A escravatura também existiu legalmente durante milénios e hoje está proibida.

Importa reconhecer que a legislação de vários países tem procurado minorar esta doença social, mas mais não consegue senão combater muito parcialmente o problema. Enquanto o cancro dos paraísos fiscais existirem a morte da equidade e da dignidade é certa, podendo-se, quando muito, atenuar os efeitos de algumas metástases. É necessário lutar contra a sua existência.

 

Compreender

Perante os factos três interrogações.

  • Como é que esta situação, viral e visível após os anos oitenta e sentida dolorosamente desde a crise de 2007, como é que estes espaços de incumpridores fiscais, corruptos, empresas fantasma e criminalidade organizada são compatíveis com a democracia? Não é a democracia o governo do povo, dos prejudicados por tais realidades? Não têm os cidadãos capacidade de influenciar o governo dos Estados? Ou será que a democracia não é o governo do povo?
  • A concorrência fiscal europeia é compatível com os princípios da cooperação, da união entre os povos e do desenvolvimento económico propagandeados pela União Europeia?
  • A circulação de capitais sem controlo, por muita «regulação» que eventualmente se lhe pretenda aplicar, é uma liberdade ou uma negação da liberdade? É compatível com a liberdade da humanidade usufruir de uma vida digna?