Carlos Pimenta, Visão online,

 

Acabar com os paraísos fiscais exige alterações profundas na correlação de forças internacional, mas é possível e necessário retirar-lhes o actual estatuto de legalidade e impunidade..
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Factos e reacções

Passou pouco tempo sobre o início das revelações dos «Documentos do Panamá», mas o suficiente para analisar algumas das suas consequências. Uns ficaram admirados, outros assumiram como um facto suspeitado, alguns revoltaram-se. Uns manifestaram-se na rua, outros promoveram o debate nos parlamentos, outros ainda ficaram como sempre. Uns desmentiram o que sobre eles os documentos diziam, outros “descobriram” conspirações maléficas contra eles, outros ainda nada disseram. Uns afirmaram que fizeram tudo de acordo com a lei (o mais habitual argumento quando a ética falha!), outros acusaram judicialmente quem os denunciou. Uns relevaram a notícia como se de outra qualquer se tratasse, outros indignaram-se contra a actuação dos envolvidos, pela colocação de riqueza ou operações contabilísticas em paraísos de sigilo, alguns preocuparam-se com formas de atenuação dos impactos dos offshores, poucos centraram a sua indignação na própria existência daqueles espaços.

Espaços de encontro de pessoas “dignas”

  • que pretendem fugir aos impostos para que outros os paguem,
  • que receberam corrupções por não cumprirem as funções a que estavam vinculados,
  • que construíram a sua fortuna em tráficos ilegais desestruturadores da vida das sociedades ou das recuperações ambientais decisivas,
  • que comandam organizações criminosas transnacionais onde tudo em permitido desde que aumente os seus lucros,
  • que pretendem branquear dinheiro com odor a crime para poderem controlar negócios legalmente constituídos,
  • que instalam os seus servidores para o cibercrime e a ciberfraude.

Uns procuraram encontrar justificações virtuosas para os paraísos fiscais esquecendo o dominante na realidade, procurando exemplos exóticos ou imaginando um funcionamento das sociedades capitalistas que tem pouco a ver com a globalização da economia não-registada, de expansão da especulação, de hegemonia do capital financeiro, de mais “crédito” para a especulação que para as actividades produtivas, de mais “crédito” para o consumo e os Estados que para a agricultura e a indústria.

É preciso ter presente que o capitalismo dominante contemporâneo é menos de criação de rendimento novo e mais de apropriação do rendimento (riqueza) que já existia. É preciso ter presente que a desigualdade na distribuição do rendimento tem aumentado, o que reduz o desenvolvimento económico-social dos povos, subestima a vida humana (muitíssimos morrem e muitos mais limitam-se a tentar sobreviver), é eticamente obscena.

Algumas coisas são certas. Como diz Ricardo Araújo Pereira “há paraísos fiscais e infernos sociais. Quem se porta mal vai para o paraíso. Quem se porta bem vive no inferno”. O revelado é apenas uma cabeça da hidra e, enquanto este escândalo é investigado, milhares de novos esquemas se processam silenciosamente. Obama, embora sabendo que alguns estados dos EUA são importantes paraísos fiscais (segundo a BBC, Delaware, um pequeno estado perto de Washington, tem 945.000 empresas, quase uma por habitante, muitos delas empresas de fachada, encobridoras do que estás por detrás e além delas), afirmou “precisamos de fazer com que a evasão fiscal mundial seja ilegal”.

Ninguém pode continuar a fingir que nada vê e sente, que nada há a construir e a destruir.

Factos e acções

Das revelações dos «Documentos do Panamá» só uma proposta coerente tem significado estratégico, há muito conhecida: é imperioso e urgente acabar com os paraísos fiscais, paraísos judiciários, paraísos de sigilo. Três em um.

Dizem uns, é impossível. Dizem outros, é muito difícil, quase impossível. Estes têm razão. Mas eles também sabem, mesmo que não tenham lido António Gedeão, que “o sonho é uma constante da vida”, presente em tudo que nos rodeia, e sabem “que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança”. A Pedra Filosofal enuncia muitos desses sonhos tornados realidade, e a eles podemos acrescentar outros.

Durante quantos milénios a escravatura foi estruturadora da sociedade, existiu legalmente? Muitos, e no entanto acabou como actividade consentida. A sua existência ilegal, ainda hoje vigente, reduz-lhe a dimensão, aumenta a condenação pública e é perseguida pela investigação criminal. Os paraísos fiscais são incomparavelmente mais recentes.

É importante assumir medidas para atenuar os impactos dos paraísos fiscais nas condições de vida dos cidadãos, para reduzir a “concorrência fiscal”, para dificultar que a liberdade de uns seja a prisão de outros. Mas nunca esqueçamos que são remendos, subterfúgios complementares da luta contra os paraísos fiscais.

Que podemos fazer desde já? A resposta tem que ser encontrada colectivamente e seria veleidade apresentar aqui uma proposta completa, mas também seria eticamente reprovável não avançarmos algumas sugestões a três níveis: mundial, europeu e português.

Os paraísos fiscais são uma das manifestações da actual organização do capitalismo globalizado. Provavelmente não liquidaremos aqueles enquanto esta existir. É certo que o combate processa-se no confronto com a realidade e os nossos conceitos não podem ignorar a grande diversidade de situações, mas há um objectivo ético e legal que podemos almejar: ilegalizar os paraísos fiscais.

Muitas das utilizações dos paraísos fiscais têm origem em actividades que já estão criminalizadas (ex. tráfico de droga, corrupção ou organização criminosa). Outras não (ex. especulação bolsista). Mas, simultaneamente, os paraísos fiscais são legais e a liberdade de circulação de capitais é uma das peças fundamentais do Consenso de Washington, consenso dos ricos para os muito ricos.

Para assumir posições internacionais é necessário coerência, sem telhados de vidro. Por isso há que acabar com as facilidades fiscais e contabilísticas (para sermos suaves) na Ilha da Madeira, incluindo:

  • Aplicação às actividades económicas localizadas, física ou formalmente, na Madeira das mesmas regras fiscais que se aplicam às pessoas, individuais ou colectivas, nacionais em território nacional. Tal significa, também, não haver nenhum beneficio, ou isenção fiscal, pela sua localização nesse “entreposto”.
  • Regulamentação e fiscalização da constituição de empresas naquela região que não permita a constituição de qualquer empresa sem funcionários exclusivos funcionando como qualquer trabalhador por conta de outrem no nosso país.
  • Prioridade para a fiscalização da contabilidade das empresas estrangeiras aí localizadas, com particular atenção sobre os preços praticados e a operações financeiras realizadas.

Ao mesmo tempo actuar como se solicita na petição pública do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos:

  • “A aprovação de orientações políticas, medidas legislativas e procedimentos de combate à existência de paraísos fiscais, de garantia da justiça e equidade fiscais para todos os cidadãos e empresas, incluindo o reforço das competências, dos recursos e das capacidades de intervenção da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);
  • e necessária subordinação do sigilo fiscal a estes princípios e objectivos.”

Teremos então idoneidade para defender

  • a incompatibilidade dos princípios programáticos do Tratado de Roma e da União Europeia com a existência de paraísos fiscais no seu seio e a existência de concorrência fiscal.

No plano internacional, onde a tudo se pode decidir, defender, no mínimo, que

  • seja aplicada de uma taxa aos movimentos internacionais de capitais, frequentemente designada como «taxa Tobin»;
  • os assuntos relacionados com os paraísos fiscais sejam analisados e decididos pela Assembleia Geral da ONU, contando para tal com o trabalho do Comité de Peritos para a Cooperação Internacional em Assuntos Fiscais ("UN Committee of Experts on International Cooperation in Tax Matters”) e dos organismos específicos que se venham a criar;
  • todos os países devem proceder a um registo público anual das entidades (indivíduos, empresas, fundações, fundos, etc.) sob a sua jurisdição fiscal, com a indicação das regras fiscais aplicadas;
  • haja total transparência bancária sempre que esteja em causa uma investigação contra a evasão fiscal das grandes empresas internacionais e das «pessoas politicamente expostas».

Já dissemos: acabar com os paraísos fiscais exige alterações profundas na correlação de forças internacional, mas é possível e necessário retirar-lhes o actual estatuto de legalidade e impunidade. A sua ilegalização catapultará o combate ao sigilo e aumentará as possibilidades de luta contra o branqueamento do capital, aspectos decisivo para uma sociedade mais humana e ética.