Raquel Brito, Visão online,
“Poucas pessoas iniciam as suas carreiras com o objectivo de se tornarem mentirosas, impostoras e ladras. No entanto, demasiadas acabam por ter esse destino.”
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Não poderia haver melhor forma de iniciar o novo ano: escrever sobre fraude! Não porque me agrade saber que ela existe, mas sim porque acredito que o silêncio em que ela se move deve ser quebrado.
Num contínuo diário vamos, todos nós, assistindo à divulgação de novos casos de fraude pois muito se tem dito e escrito sobre corrupção, crime de colarinho branco, conflito de interesses, extorsão, fraude fiscal (…), tornando-se percetível o quão pernicioso é o fenómeno, bem como a gravidade das consequências destes crimes para todos nós. Na verdade, este é um fenómeno amplamente divulgado nos meios de comunicação social, essencialmente em virtude dos protagonistas envolvidos, do volume dos montantes atingidos e do interesse público que terá essa divulgação. Contudo, para além do que é divulgado pela comunicação social, pouco mais é sabido.
Sempre que se discute sobre este fenómeno (e refiro-me à fraude de forma alargada) diversas direções podem ser seguidas: as motivações individuais que lhe subjazem, as suas consequências, os agentes envolvidos, o local onde ocorre (setor público e/ou privado), as leis que o limitam, entre outras. Diversos e extensos podem ser os discursos que incluem temas como a fraude e a corrupção, sendo estes conceitos, por si só, capazes de gerar uma profunda dissertação.
A fraude no setor público ocorre, quase sempre, com a “ajuda” do setor privado, desenvolvendo-se uma teia de tal forma complexa que muitas das vezes, até por questões processuais, se torna impossível “fazer justiça”. É um fenómeno difícil de combater e muito mais difícil, quiçá impossível, de extinguir, por conseguinte deveria assumir-se como uma prioridade para a investigação criminal. Apesar da fraude no setor público estar muitas vezes associada ao setor privado, o nosso interesse, enquanto contribuintes, recai sobre o setor público. Sendo certo que a fronteira que separa a fraude do setor público e do privado é ténue e difícil de traçar.
(In) Conscientemente, acreditamos que a grande maioria dos funcionários públicos, bem como os seus dirigentes são honestos, e trabalham árdua e diariamente no sentido de tornar melhor a vida dos cidadãos. No entanto, existe sempre um pequeno grupo que acaba por assumir más opções. Neste grupo é possível encontrar indivíduos pertencentes a qualquer instituição pública, nomeadamente hospitais, tribunais, instituições das forças de segurança, câmaras municipais.
Importa nesta análise seguir uma direção: A FRAUDE NOS MUNICÍPIOS
E aqui novamente se destaca o papel da imprensa, colocando os municípios frequentemente no centro das atenções sempre que esta problemática é notícia. Diversos casos têm sido constantemente divulgados, debatidos e escrutinados pelos órgãos de comunicação social.
- As recentes descobertas que envolvem a anterior gestão da CM vila Nova de Gaia, em referência a avultadas somas de indemnizações pela compra de terrenos, desvios de dinheiro, …, uma gestão ruinosa;
- O sucedido na CM de Felgueiras, e todos os acontecimentos protagonizados pela autarca Fátima Felgueiras (um suposto desvio de fundos para o clube de futebol, supostas fraudes em licenças de loteamentos, suposto “saco azul”, …);
- Os consecutivos fait-divers do Major Valentim Loureiro enquanto dirigente máximo da CM de Gondomar (suposta utilização de indevida de fundos comunitários através de um esquema de faturas falsas, suposto branqueamento de capitais, suposta fraude fiscal, …)
A lista, quer de agentes, quer de atos não pararia por aqui, pois, em certa medida, a comunicação social alerta-nos para os casos que envolvem figuras mais mediáticas, uma seleção editorial que procura alargar o leque das audiências. No entanto, com toda a certeza, os comportamentos fraudulentos não serão todos da responsabilidade dos topos da hierarquia, muitas vezes alheios ao que se passa. Neste sentido seria de todo fundamental realizar recolhas sistemáticas de dados sobre comportamentos fraudulentos perpetrados pelos municípios, envolvendo todos os seus funcionários. Para posteriormente se proceder à sua análise, tirar conclusões e divulgar resultados.
Atualmente, o cidadão já se interessa pelas contas públicas (principalmente se isso se reflete no seu orçamento pessoal), o que obriga os governos à prestação de informações fidedignas e imparciais, recolhidas com método. Seria fundamental aceder a dados mais concretos e rigorosos do que os difundidos pelos media.
À semelhança do que se passa em diversos países da Europa, as instituições públicas deveriam ser sujeitas a processos metodológicos que avaliassem os níveis de fraude/corrupção das mesmas. A título de exemplo, na Holanda existe uma preocupação em perceber claramente qual o ponto de situação em que vivem as instituições públicas ao nível da fraude.
O objetivo é a recolha de dados que permita perceber a extensão do problema da fraude nas instituições públicas. Não se afigura tarefa fácil: ambiguidade dos conceitos, dificuldades na operacionalização, custos elevados associados ao trabalho de campo, limitações comuns às investigações das fraudes no setor privado. Mas como já alguém disse Não é por as coisas serem difíceis que nós não ousamos, é por nós não ousarmos que elas são difíceis.
A complexidade surge logo com a ambiguidade dos conceitos, a forma como definimos determinada palavra conduz-nos a diferentes resultados. Das diversas definições de Fraude releva a seguinte síntese: todo o ato intencional de pessoas, individuais ou coletivas, perpetrado com logro, e que causa, efetiva ou potencialmente, vantagens para alguns ou danos a outros e que violam as boas práticas sociais, a ética, ou a lei. As vantagens ou os danos têm uma expressão económico-financeira. Pode ainda considerar-se que o conceito de fraude engloba o de corrupção (qualquer que seja a forma que esta assuma).
Resulta da definição escolhida perceber que existe um dano, que há quem é gravemente prejudicado com os comportamentos fraudulentos! Ora, as fraudes praticadas municipais acarretam danos e prejuízos para um amplo número de indivíduos. A este grupo pertence todo e qualquer cidadão.
Consequentemente é percetível que, não se distanciando dos outros tipos de crime (tráfico de seres humanos, homicídio, violência doméstica, etc), a fraude municipal também causa vitimas: TODOS NÓS.
Se por um lado já há algum tempo que as vítimas assumem um papel fundamental no estudo do fenómeno do crime em geral, por outro lado, as estatísticas oficiais (dos casos que passam pelo sistema de justiça) já não são os únicos dados utilizados nesses estudos. Na investigação criminal já é possível contar com uma vasta metodologia, na qual se incluem os inquéritos de delinquência autorrevelada (muitas vezes aplicados em escolas com intuito de se perceber a dimensão dos comportamentos delinquentes – ou não – dos jovens), ou os inquéritos de vitimização que se poderão revelar fundamentais na prossecução da quantificação dos dados sobre a fraude nos municípios. Com esta metodologia o objetivo principal seria auferir o maior número de dados sobre a quantidade, tipo, diversidade, frequência de casos de fraude relatados por munícipes.
A existência de “cifras negras”, a desorganização das vítimas, a falta de visibilidade das vítimas deste tipo de crime, bem como os danos sentidos por elas mais do que justificam esta análise. Perspetiva já reconhecida anteriormente, a promoção de estudos de vitimização contribuem para clarificação do real número de vítimas, explicam os crimes não reportados e ilustram as “cifras negras” do crime que existem entre as estatísticas oficiais e as experiências das vítimas.
O ideal seria recolher dados em função da perceção que a população tem sobre fraude, quais os limites do poder político administrativo, bem como a sua capacidade de oposição à fraude municipal. E assim tentar perceber até onde se estende a anomia das populações relativamente a este tema.
Com as metodologias certas e os instrumentos adequados os dados poderiam ser recolhidos de distintas formas:
Internamente - informações dos funcionários respeitantes ao seu próprio comportamento fraudulento, relatórios dos trabalhadores sobre comportamentos fraudulentos que tenham assistido no seu ambiente de trabalho, investigações internas sobre atos de corrupção,…
No exterior – casos de corrupção descritos na comunicação social, aceder a investigações criminais que tenham ocorrido, Informações sobre a “reputação” da corrupção aos olhos dos cidadãos (– Talvez associando ao Índice de transparência),…
É urgente terminar com a escassez de informações rigorosas sobre as fraudes municipais, é urgente avançar com estudos metodológicos sérios que se sobreponham aos casos avançadas pelos órgãos de comunicação social, é urgente dar aos autarcas instrumentos de investigação que lhes permita refutar o clima de desconfiança que paira na sociedade portuguesa.
Os autarcas do nosso país deveriam, à semelhança do que já é feito noutros países, dar início a uma investigação séria, imparcial e de elevado rigor científico que permitisse aos respetivos munícipes perceber a real situação em que se encontra o poder local.
É necessário interiorizar que a fraude que envolve funcionários públicos (seja qual for o lugar que ocupe na hierarquia das instituições) arruína a confiança pública, distorce as relações entre os indivíduos e a confiança que as solidifica, deixando pelo caminho elevados desperdícios monetários. Os comportamentos corruptos fazem aumentar a assimetria da informação e falseiam a concorrência económica, transferindo rendimento da sociedade para defraudadores e conluiados, degeneram o suporte ético da vida em sociedade, agravam as desigualdades sociais e as injustiças. Simultaneamente estas consequências manifestam-se no quadro das atribuições dos órgãos de direção municipal: utilização da propriedade pública, do dinheiro ao imobiliário, prestação de serviços às populações locais, influencia as condições de vida e inserção ambiental.
Sendo o poder local a mais próxima manifestação dos cidadãos, todas as irregularidades que resultam das fraudes enfraquecem a confiança entre as populações e os Estados que formalmente os representam.
A crer na sabedoria popular que afirma que quem não deve não teme, iremos com certeza assistir a um nova forma de encarar a investigação da fraude municipal. Certamente será revestida de mais seriedade e rigor. Numa época que tanto se debate acerca do OE, de privatizações, de bancos e banqueiros, porque não iniciar a investigação e posterior intervenção ao nível local, ao nível daquilo que mais próximo possuímos: o nosso município.