Carlos Pimenta, OBEGEF

 

A moeda «electrónica» Bitcoin tem provocado em diversos meios grande euforia. As histórias sobre a sua criação e a recente detenção do seu presumível autor entusiasmam os órgãos de informação. Impõe-se alguma análise crítica do fenómeno.

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A recente publicação, aqui, de uma crónica centrada no Bitcoin despertou-me para espelhar alguns comentários, centrados em três aspectos: o que é ser moeda; a importância da chamada regulação; o seu encantamento simbólico.

1. A moeda é a contrapartida de qualquer bem económico. É um equivalente geral que, como tal, preenche um conjunto de funções. É em moeda que o valor dos bens se exprime, reflectindo tanto o valor deste como o da moeda, assumindo a forma de preço. Esta função de padrão de preços é o garante da moeda poder funcionar como meio de circulação das mercadorias. Com a densidade da actual divisão social de trabalho ‒ mundial, regional e nacional, conforme os mercados ‒ as trocas só são viáveis porque a moeda está sempre presente. Porque a moeda é também a expressão do rendimento, fluxo da riqueza, a função de entesouramento é a assunção desta sob a forma monetária. É na sequência desta função que a moeda é o suporte do crédito (e da usura frequentemente confundida com aquele) preenchendo a função de meio de financiamento. Contudo a moeda e o crédito têm uma interacção recíproca: a moeda serve de suporte ao crédito e este cria moeda.

A moeda é uma rede de relações entre diversos tipos de moeda, com as mais diversas origens (internacional, como por exemplo, os Direitos de Saque Especiais; regional, como o euro; nacionais como as múltiplas moedas dos diversos países; privadas, como os depósitos bancários e créditos de instituições várias). Para que estes diversos tipos de moeda preencham as funções anteriormente referidas é necessário que haja uma convertibilidade entre eles, directamente ou em cadeia. Qualquer destes tipos de moeda podem funcionar como moeda aceite nas trocas internacionais desde que essa convertibilidade esteja garantida.

Não podemos perder de vista que, mesmo utilizando o nome de uma moeda nacional ou regional, é a moeda de origem privada que é quantitativamente dominante à escala mundial. Daqui resulta um potencial conflito: compete aos Estados garantir que a moeda, e os diversos tipos de moeda, existam e se reproduzam adequadamente, mas são os privados que dominam a sua criação (ampliado nas últimas décadas pela importância dos mercados financeiros e pelo crescimento do capital fictício).

O Bitcoin passou a ser um tipo de moeda de origem privada a partir do momento em que garantiu a convertibilidade noutros tipos de moeda. A análise da evolução das suas cotações (fig, 1) mostra que, provavelmente, apenas a função de entesouramento foi assumida plenamente. Contudo as outras funções poderiam vir a ser garantidas a partir do momento em que algumas multinacionais de trocas electrónicas ou de movimentação de créditos a aceitassem. É um tipo de moeda como outro qualquer, com a simples diferença de que a tecnologia do seu funcionamento dificulta deliberadamente qualquer forma de controlo exterior ao seu próprio funcionamento.

2. A função pública, essencialmente nacional, de garantia da qualidade da reprodução da moeda, tem assumido ao longo dos séculos formas muito diversas, espelhando-se hoje no papel de alguns organismos internacionais e nos bancos centrais, supranacionais ou nacionais. Antes chamou-se-lhe planeamento, depois controlo e hoje regulação. Gradação terminológica que reflecte menor intervenção pública e maior importância qualitativa e quantitativa das instituições privadas. Só essa degenerescência do poder público justifica a complacência com a circulação de capitais à escala internacional sem qualquer entrave ou controlo burocrático, os “buracos negros” financeiros dos paraísos fiscais. Os resultados estão à vista: o risco sistémico de destruição da moeda bancária, a capacidade da moeda privada transferir para os outros, eufemisticamente designados de contribuintes, a responsabilidade da reprodução da moeda que a sua iniciativa deteriorou ou destruiu.

Há que manter a responsabilidade pública da continuidade da moeda ‒ no actual quadro de profundas desigualdades internacionais, é preferível assentar dominantemente nos Estados nacionais ‒ mas há simultaneamente que reconhecer que a regulação tem sido uma impostura (regulação assente no Consenso de Washington, na defesa da desregulação, na ausência de fiscalização e na descriminalização).

Como defender a regulação da Bitcoin e de outros tipos de moeda similares quando é visível a incapacidade dos bancos centrais para o fazerem ao que há muito existe (moeda bancária e sua articulação com a moeda nacional)?

3. Galbraith alertava para a fraca memória histórica sobre as catástrofes económicas e financeiras, para a tendência das novas gerações se entusiasmarem com o velho que parece novo. A Bitcoin testemunha inequivocamente esta afirmação. Muito se escreveu e elogiou a “nova” moeda, o tema ganhou relevância nos meios académicos, os órgãos de informação regozijavam com o “mistério” da sua origem, fizeram-se planos de novas moedas para resolver os problemas da humanidade (o Bitescudo também “visava” resolver o drama da dívida pública, quiçá da divida privada externa). No entanto as moedas privadas têm séculos de existência, assumindo várias formas.

O período que decorreu desde a crise do subprime até aos dias de hoje reforçou a amnésia. Mantiveram-se as ideias keynesianas agrilhoadas e alicerçou-se a pretensa resolução da crise nos princípios que a geraram! Provavelmente também por ignorância e estupidez, mas essencialmente porque a partilha mundial do poder económico-financeiro o impôs.

É este o mundo em que vivemos mas em que muitos, dos tais referidos contribuintes, querem deixar de habitar.

Figura 1

Fig01_bitcoinFonte: www.voindesk.com