Óscar Afonso, Público,

 

 Depois de uma fase inicial de convergência real com a média europeia, na sequência da adesão à então Comunidade Económica Europeia, Portugal entrou num processo de divergência real e a descida das taxas de juro induziram um endividamento excessivo. Na sequência desse endividamento e do descontrolo orçamental, a poupança da nação reduziu-se e, conjugada com a perda de competitividade, também as contas externas se deterioraram. Mais despesa pública significou puro gasto público em lugar de investimento produtivo, acabando por representar mais carga fiscal e, por isso, menos poupança, que foi também negativamente incentivada. A par de tudo isto, ou por tudo isto, a economia paralela não parou de crescer, motivada pelo acréscimo da evasão fiscal face ao “incentivo” para operar fora da economia oficial. É certo que a ruína na competitividade foi o resultado de causas externas (perda do instrumento taxa de câmbio, alargamento da União Europeia a leste e maior penetração no mercado europeu de países como a China), mas também é verdade que foi o resultado de causas internas, com a aposta no exíguo mercado interno.O resultado de políticas nacionais desajustadas foi pois um crescimento económico marginal e fictício porque se baseou num conjunto de importantes desequilíbrios macroeconómicos, especialmente nas contas oficiais (públicas e externas), insustentáveis no longo prazo e que, num primeiro momento, incentivaram ataques especulativos à dívida pública portuguesa e, numa segunda fase, obrigaram o país a recorrer ao mecanismo de assistência financeira externa, em 2011, financiado pela zona euro e pelo FMI. Efectivamente, os PECs eram apenas paliativos para adiar o ajustamento. Na altura, a um passo da bancarrota e sem acesso aos mercados, a sensatez e a responsabilidade levaram o Estado a seguir esse caminho para evitar o cessamento de pagamentos a funcionários públicos, pensionistas, fornecedores e credores. Foi então adoptado um programa de ajustamento com medidas restritivas de curto prazo, com custos significativos no produto e no emprego, e “reformas estruturais” de longo prazo. Dada a dimensão dos desequilíbrios, o processo de ajustamento foi naturalmente duríssimo.

Quanto às contas públicas, refira-se que um défice orçamental tem de ser financiado por venda de activos, e/ou através do financiamento monetário (proibido na zona euro e tendencialmente inflacionista) e/ou através da emissão de dívida pública. Neste último caso, no entanto, há tendência para o aumento da taxa de juro da dívida pública que, se superar a taxa de crescimento do PIB, faz com que o seu peso no PIB aumente. Assim, se o défice orçamental for persistente e de dimensão significativa, mais cedo ou mais tarde, a situação tem de ser corrigida. Para o efeito, podem, como sucedeu, diminuir-se os gastos públicos, comprometendo a promoção da eficiência económica, da equidade, da estabilidade macroeconómica e do crescimento económico. Podem ainda aumentar-se impostos, via taxas, como sucedeu, ou via combate à economia paralela, já que sendo anualmente superior a 40 mil milhões de euros há uma parcela muito relevante de impostos que fica por cobrar.

Quanto às contas externas, a balança corrente corresponde à diferença entre a poupança da nação e o investimento. Um défice significa que o país está a viver “acima das possibilidades” e necessita de ser financiado (aumentando a dívida externa). Tal não pode perdurar no longo prazo, uma vez que, como aconteceu, as taxas de juro sobem e/ou o financiamento torna-se difícil. Assim, face à exigência dos mercados financeiros, algures no tempo o ajustamento torna-se, como naturalmente sucedeu, inevitável, remetendo para medidas promotoras do crescimento económico, do emprego, da melhoria da competitividade internacional, que, por sua vez, gera aumento das exportações; era esta a lógica das reformas estruturais. Alternativamente ou supletivamente, o ajustamento pode originar medidas de austeridade, que gerem redução do consumo (público e privado) e, dessa forma, das importações, como foi o caso.

Neste processo emergem muitas questões interrelacionadas. Entre as quais, podemos perguntar-nos como foi possível: registar défices correntes oficiais tão significativos e persistentes desde 1995; a existência de governos impávidos e serenos perante o descalabro observado na competitividade externa e no valor da dívida externa; atingir um endividamento tão elevado de todos os agentes económicos (indivíduos, empresas e Estado); não antecipar as dificuldades de financiamento nos mercados internacionais; conviver com a trajectória de crescimento da economia paralela. Em suma, como foi possível que a crise financeira internacional pós-2007 tivesse imediatamente gerado escassez de crédito e subida do seu preço, precipitando o pedido de ajuda externa.

Responder a estas questões exigiria uma crónica adicional. Por hoje, resta-nos referir que o programa de assistência apresentou três objectivos complementares: consolidação orçamental, desalavancagem e estabilidade financeira, e transformação estrutural da economia. O 1º objectivo originou políticas orçamentais e de rendimentos restritivas, o 2º acções de recapitalização dos bancos e alterações no enquadramento regulatório, e o 3º um programa de reformas estruturais. O ajustamento externo parece conseguido, já que pela primeira vez desde 1985 se observou superávite corrente em 2013 e 2014. A correcção do desequilíbrio das contas públicas tem sido bem mais difícil. A recessão produziu um aumento das despesas sociais e, juntamente com o aumento do peso da economia paralela, uma redução das receita fiscal. Apesar das medidas restritivas, os objectivos para o peso do défice público no PIB oficial foram sucessivamente alterados e o peso da dívida pública no PIB oficial continua elevado. O programa originou pois custos importantes no curto prazo, com uma profunda depressão da procura interna, uma forte quebra do PIB oficial e do investimento, e a coesão social evidenciou sinais de deterioração.

Apesar de tudo, Portugal acabou por ter “uma saída limpa” do processo e a hipótese de uma “espiral recessiva” parece afastada. Em vez da aposta no consumo e no investimento público; ou seja, no reduzido mercado interno, a aposta tem passado pela saúde financeira do Estado e pela iniciativa privada voltada para o mercado externo, na expectativa de que, desse modo, haja uma transformação da estrutura produtiva e crescimento económico sustentado. É certo que há que investir mais na qualificação dos recursos humanos, no empreendedorismo, na melhoria da qualidade das instituições, com a justiça à cabeça, e no combate à economia paralela. É ainda certo que a taxa de desemprego é significativa e há desigualdades gritantes. Mas, apesar de tudo, face à dimensão dos desequilíbrios as coisas poderiamter sido bem piores.