José António Moreira, Público,

 

  1. Recentemente, falavam-me de uma escola básica que estava a considerar lecionar no próximo ano sessões sobre empreendedorismo, a exemplo do que já acontecera no ano passado. Não pude deixar de questionar se, alternativamente, não seria melhor, para a formação dos alunos, usar essas sessões para lhes ministrar noções financeiras básicas.
  2. Há problemas importantes que a sociedade reconhece precisarem de solução. Porém, misturados com problemas “urgentes”, vão sendo sucessivamente relegados para posições inferiores na escala das prioridades governativas. É o caso da “iliteracia financeira”, a incapacidade dos cidadãos “fazerem julgamentos informados e tomarem decisões concretas tendo em vista a gestão do dinheiro”. Mais de 90% dos cidadãos portugueses possui uma ou mais contas bancárias, mas tão elevada taxa de “bancarização” não é acompanhada por idêntico grau dessa literacia, de onde resultam importantes custos sociais.
  3. Os denominados “lesados do papel comercial do Banco Espírito Santo (BES)” clamam ter sido defraudados pelos seus interlocutores no BES, que lhes terão vendido esse produto financeiro sob o pressuposto de que se tratava de aplicação “sem risco”, tão seguro como um depósito a prazo. Primeiro sinal do seu baixo grau de literacia financeira: não há produtos financeiros sem risco, nem mesmo um depósito a prazo, apesar da existência de uma garantia até ao limite de 100.000 euros por depositante. (Casos recentes nacionais e internacionais demonstram-no.) No entanto, o risco do papel comercial tende a ser superior. O simples conhecimento da relação “risco-rentabilidade” teria permitido a essas pessoas intuir a natureza do produto que estavam a subscrever, mesmo sem lerem a “Nota Informativa” da respetiva emissão. Se oferecia uma remuneração superior à dos depósitos (mais do dobro), é porque existia, também, maior risco. Tal relação é das melhores linhas de defesa contra surpresas indesejáveis, no limite contra fraudes financeiras, sobretudo para o cidadão financeiramente menos culto.
  4. O “Caso D. Branca”, que tanta tinta fez correr na primeira metade da década de 80 do século passado, é disso exemplo. Era um esquema piramidal em que dita senhora recebia depósitos que remunerava a 10% ao mês, numa altura em que a taxa anual dos depósitos a prazo na banca rondava 30%. Depois do alerta do Ministro das Finanças da altura, Prof. Ernâni Lopes, chamando a atenção dos portugueses para os cuidados a ter com a referida aplicação, a corrida ao levantamento dos depósitos junto da senhora fez colapsar o esquema, com os últimos depositantes a serem as principais vítimas. Foi um esquema fraudulento que poderia ter sido evitado se os “depositantes” da D. Branca tivessem um grau superior de literacia financeira, nomeadamente no que respeita ao conhecimento da acima mencionada relação “risco-retorno”. (E, claro, se não se deixassem guiar pela ganância de uma taxa de juro irrealista.)
  5. Cerca de 60% das famílias portuguesas tem um ou mais empréstimos contraídos, dos quais cerca de metade estão relacionados com a habitação. Volte-se às consequências da fraca literacia financeira. Não se trata de lacuna de formação que deva preocupar unicamente quem tem poupanças e precisa de as aplicar. Deve ser preocupação transversal, pelo impacto que tem na vida quotidiana de cada indivíduo ou família e, globalmente, na da sociedade. No inquérito que o Banco de Portugal levou a cabo junto da população portuguesa em 2010, destinado a aferir se os cidadãos tomavam decisões informadas em aspetos da sua vida financeira, nomeadamente na aplicação de poupanças e no recurso ao crédito, as conclusões apontavam para reduzido grau de literacia financeira. No caso de empréstimos, a percentagem dos cidadãos inquiridos que não comparavam taxas ou condições antes de os contraírem era de cerca de 40%; entre os que tinham um empréstimo à habitação, cerca de 60% dos entrevistados não sabia qual o “spread” que lhes era aplicado pelo banco ou apenas tinha uma noção aproximada da respetiva ordem de grandeza. São comportamentos assustadores se se considerar que este tipo de empréstimos tende a estender-se por dezenas de anos. Qualquer erro na respetiva contratação é passível de afetar de modo duradouro a vida do mutuário.
  1. O período de ajustamento macroeconómico e financeiro que o país vem vivendo desde 2011 originou um aumento muito substancial de incumprimento financeiro por parte das famílias, relativamente aos empréstimos contraídos. Em grande parte, esse incumprimento terá sido ocasionado por situações de desemprego que reduziram o rendimento disponível. Porém, a natureza de decisões financeiras anteriormente tomadas, por exemplo o financiamento de necessidades de consumo por recurso a cartões de crédito e outros produtos de custo igualmente gravoso, ou o elevado número de empréstimos contraídos, também afetou, exponenciando, os efeitos resultantes da crise, levando muitas famílias à insolvência. O reduzido grau de literacia financeira não é alheio a tais consequências.
  2. No domínio das relações financeiras, informação continua a ser poder. Porém, a tradicional clivagem social entre quem tinha acesso à informação e quem o não tinha vem-se diluindo à medida que a Internet se massifica, possibilitando uma mais alargada e menos custosa disponibilização da informação, e que a regulamentação financeira é mais abrangente. No entanto, a clivagem social em torno da informação não desapareceu. Alterou-se, centrando-se agora na (in) capacidade para a ler, interpretar e usar. De um lado os que o sabem fazer, e fazem; do outro, os denominados “infoexcluídos”. A literacia financeira contribui para reduzir essa assimetria, proporcionando relações financeiras mais equilibradas e permitindo minimizar a possibilidade de ocorrência de fraudes.
  3. Defendo, pois, que o próximo Governo, com urgência, coloque no terreno a Resolução da Assembleia da República n.º 75/2015, votada na sequência do caso BES, para "a inclusão obrigatória nos currículos escolares de disciplinas ou vertentes de educação sobre literacia financeira, ajustadas aos diversos escalões etários". No entanto, com idêntica urgência, espero que ele defina e implemente um plano de emergência nacional destinado a aumentar o grau de literacia financeira dos adultos. Por uma sociedade mais igual e mais justa.