Carlos Pimenta, OBEGEF
A passagem do individual para o colectivo representa uma ruptura qualitativa
1, Fui um compulsivo leitor de teatro e romances. Fizeram-me viajar por tempos e espaços que nunca alcançaria, despertaram-me emoções e deduções, deram-me informação, imaginação e conhecimento. Liberdade ou Morte de Nikos Kazantzaki, relatando a luta dos gregos contra a ocupação turca, marcou profundamente a minha personalidade, sem que disso me tivesse apercebido quando da leitura.
Escrito em 1950, editado em português em 1963 e lido pouco tempo depois, permaneceu mais de quarenta anos na estante. Há dois anos voltei a desfolhá-lo e foi com alegria que encontrei algumas raras frases sublinhadas. Uma delas voltou a tocar as cordas da minha sensibilidade e percebi quanto se tinha enraizado no meu inconsciente: “a felicidade individual não existe para as pessoas como nós, fica-o sabendo. Só poderemos ser felizes se lutarmos pela felicidade de todos” (231).
Associei-a a uma frase bem conhecida de Saint-Just, pronunciada em plena Revolução Francesa, na qual participou intensamente: “a ideia da felicidade é algo de novo na Europa”.
O capitão Micael já tinha sentido a felicidade. Saint-Just sabia que ao longo de milénios muitos homens consideraram-se felizes. Mas quando a colectividade toma consciência da sua situação, rompe as rotinas e orienta a sua existência pelo futuro, percebe que pode ser criado um sistema social em que haja condições para a felicidade duradoira e generalizada. Nesse momento os homens souberam tomar nas suas mãos o seu destino, passaram a ser obreiros da sua existência.
2. Com a consciência que a passagem do individual para o colectivo representa uma ruptura qualitativa, pus-me, sem a convicção heróica de Micael, a pensar na fraude, para tirar lições para o futuro, para tentar perceber o que fazer para criar uma sociedade mais ética e justa em que todos possamos viver.
Também podemos atribuir o ambiente fraudulento e corrupto em que estamos afogados ‒ que ataca intensamente as malhas do poder económico e político, tornando a honestidade da maioria dos cidadãos quase uma excepção à regra ‒ a uma específica época histórica?
A resposta parece-me afirmativa. Se sempre houve fraudes pontualmente, a Revolução Industrial do século XVIII trouxe-lhes outro significado social e capacidade de propagação. Não faltam exemplos de grandes defraudadores, burlões, que há muitas décadas se tornaram célebres pelo seu engenho e arte de praticar a «Arte de Furtar»; o italiano Carlo Ponzi (1920) e o português Alves dos Reis (1925) são exemplos paradigmáticos. Nos passados anos 40 foi mostrado inequivocamente, por Sutherland, dois aspectos actuais da realidade contemporânea: as fraudes económico-financeiras são avassaladoras e mais graves para a comunidade que os crimes de rua; os criminosos não são pessoas ou organizações socialmente marginalizadas, são elites integrantes do poder. Contudo, parece podermos afirmar que é depois dos anos 80/90 que a economia paralela, a fraude e a corrupção se tornam sistémicas.
Porquê então? Há quatro acontecimentos que podem contribuir para explicar esta mudança. Acontecimentos em parte autónomos e de natureza diferente, em parte inter-relacionados bilateral ou multilateralmente: (1) A difusão da microinformática (o primeiro microprocessador inserido nos circuitos comerciais data de 1971, mas é em 1981 que a IBM lança nos mercados os computadores pessoais); (2) A política de Reagan e Thatcher (o primeiro foi presidente dos EUA entre 1981 e 1989 e a segunda foi primeiro-ministro do Reino Unido de 1979 a 1990); (3) A financiarização da economia (aumento qualitativo da importância das actividades financeiras nas economias desenvolvidas e no mundo); (4) A queda do muro de Berlim (último episódio simbólico de um enfraquecimento progressivo dos países socialistas durante essa década).
Porque o primeiro factor é tecnicamente autónomo, tanto podendo servir a honestidade como a fraude, é nos três últimos que devemos concentrar a nossa explicação, a nossa utopia e a nossa vontade de transformação.